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Terra à vista!

Como a Lapônia se tornou a terra do Papai Noel

Felipe van Deursen

22/12/2018 09h00

Vila do Papai Noel

66º54'N, 25º84'L
Vila do Papai Noel
Rovaniemi, Lapônia, Finlândia

Há gerações repetimos às crianças que Papai Noel vive em algum ponto próximo do Polo Norte, de onde viaja na véspera de Natal e despeja presentes para quem ele julgou merecedor naquele ano. Em nome da magia e contra regras da física e da geografia, desprezando a gravidade, a aerodinâmica, a lei de elasticidade de corpos, os direitos dos animais, os fusos horários e as particularidades da engenharia de dutos de excreção de fumaça de cada cidade, esse idoso gordo e simpático dá seu jeito de distribuir os pacotes por chaminés em todos os cantos do mundo – ou melhor, onde presentes fazem parte da tradição nos dias 24 e 25 de dezembro.

Depois, ele tira férias, toma chá de sumiço, ignora convites para desfilar no Carnaval e volta para sua oficina no norte do globo, mais precisamente na Lapônia.

Mas por que lá? Quem decretou isso? Papai Noel é finlandês?

Não, não é. A lenda de uma figura mágica que distribui presentes para quem se comportou bem ganhou força na Europa medieval do século 12 e remonta a são Nicolau, um bispo que teria vivido 800 anos antes em Mira, uma antiga cidade na costa turca. Esse bispo presenteador teve altos e baixos de popularidade e foi ora perseguido ora enaltecido por diversas lideranças cristãs. Em 1532, Martinho Lutero chegou a defender a coexistência pacífica entre são Nicolau e o Menino Jesus como os presenteadores do Natal.

No século 19, os imigrantes europeus que viviam nos Estados Unidos deram nova forma às tradições que envolviam o santo. Nicolau aposentou as vestes de bispo, virou o bom velhinho ecumênico e estabeleceu endereço fixo no Polo Norte, tornando-se o Papai Noel. Mas não foi uma mudança repentina e definitiva. Naquela época, havia uma série de imagens diferentes do personagem. Ele tinha tamanhos variados, podia ser um gnomo ou um homem adulto, de cara pelada ou coberta pela barba branca. A fauna de carga era ainda mais extravagante. Além das renas voadoras, outros animais às vezes surgiam para a tarefa, como cavalos anões, alces, beija-flores e perus.

Até que, em 1857, uma descrição desenhada de Noel sobressaiu. Em 26 de dezembro, um ilustrador anônimo retratou na revista americana Harper's Weekly um homem gordo, de roupa vermelha, botas pretas de cano longo, ajudantes duendes e um castelo de gelo em um cenário ártico, relata o historiador canadense Gerry Bowler no livro Papai Noel – Uma Biografia. O esconderijo seria debaixo do Monte Hekla, um vulcão bastante ativo na Islândia.

Monte Hekla, vulcão na Islândia (crédito: Hansueli Krapf)

Essa figura gente boa pegou, se espalhou e se consolidou na década seguinte, graças principalmente à pena do artista Thomas Nast, que criou boa parte do universo de Noel que conhecemos hoje em uma série de ilustrações. Em "Papai Noel e Suas Obras", de 1869 (ou 1866), publicada na mesma revista, vemos, pela primeira vez, a descrição "Cidade do Papai Noel, no Polo Norte" (veja lá no lado direito, em cima, na curvinha, talvez com uma lupa, se necessário for, a legenda "Santa Claussville, N.P." – o gelo e o frio da ilustração, além da conexão que já existia, pelas histórias correntes, entre o Papai Noel e o Polo Norte, permitiram a Nast abreviar o que parecia óbvio, daí o "N.P.", de "North Pole").

Ilustração de Thomas Nast (The New York Times Company e Harp Week)

O Polo Norte era um lugar que fazia sentido para o mito. Frio, isolado, independente de qualquer nação – e, no século 19, ainda distante das disputas por petróleo, gás e novas rotas marítimas que o aquecimento global causou.

Passaporte finlandês

Na década de 1920, na Finlândia, ganhou força a ideia de que a oficina do velho presenteador (ou melhor, da sua versão local, já que ele ainda não era uma figura tão universal) ficava no país. Ela seria em Korvatunturi, uma colina rochosa na Lapônia finlandesa. A Lapônia é uma região no norte da Escandinávia maior que o Mato Grosso do Sul. Ela abrange a área ocupada por quatro países: Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia.

Mas, fora do país que deu ao mundo a sauna, essa ideia ainda estava longe de pegar. Hollywood dá um exemplo. No pseudodocumentário Santa Claus (1925), Frank Kleinschmidt usou filmagens do Alasca e da Sibéria para contar a história do esconderijo de Papai Noel.

Em 1939, a então União Soviética invadiu a Finlândia. A região fronteiriça entre os dois países, na Lapônia, teve papel importante na Segunda Guerra Mundial. Os finlandeses, em oposição aos expansionistas soviéticos, se aliaram aos nazistas. Uma má ideia, pois o país acabou apanhando das duas potências. Os arredores de Rovaniemi, a capital da Lapônia finlandesa, viraram um cenário de guerra. A cidade foi bombardeada por russos e devastada por alemães em debandada com a derrota iminente.

Depois, o Natal chegou. Rovaniemi se reergueu em um projeto do arquiteto finlandês Alvar Aalto. O novo desenho da cidade lembra – veja só você – a cabeça de uma rena, com direito até a chifres.

Porém, foi só na década de 1980 que a Finlândia resolveu dar passaporte e caixa postal para o Papai Noel. O departamento de turismo do país, de olho no potencial do personagem mais influente da ficção nos últimos 200 anos (torçamos para a Disney não dar seu jeito de também comprar o Papai Noel), decidiu, em 1984, declarar a Lapônia como a "província do Papai Noel". No ano seguinte, o governo inaugurou nos arredores de Rovaniemi a Vila do Papai Noel e a agência de correio que responde cartinhas natalinas com um selo do Círculo Polar Ártico (que cruza o terreno da atração).

Um desfecho turisticamente oportuno e ironicamente fofo para uma terra que, há menos de 80 anos, guardava as marcas da guerra. O bosque perto do escritório do bom velho guarda resquícios largados por apoiadores dos nazistas. O Aeroporto Oficial do Papai Noel, como o aeroporto de Rovaniemi é conhecido, era campo de pouso da Luftwaffe, a Força Aérea de Hitler.

Para um bispo da Ásia Menor que foi adorado na Europa medieval, misturou-se e inspirou costumes e lendas pagãs, imigrou para a América do Norte, onde deixou de vez a parte religiosa da festa para o Menino Jesus e reforçou seu lado bonachão e familiar e acabar sendo abraçado pela publicidade e a cultura popular, ganhar uma casa na Lapônia fazia sentido.

Não que não houvesse concorrência. A Suécia já declarou que o velho trabalhador vive em Tomteland, a Noruega definiu que ele mora em Drobak e a Dinamarca registrou o endereço dele na Groenlândia (a maior ilha do mundo é território dinamarquês). Até mesmo a Turquia muçulmana chegou a se promover como o lar do são Nicolau original. Mas o marketing finlandês foi mais bem-sucedido, e hoje relacionamos mais a Lapônia como terra do Papai Noel do que qualquer outra região.

A Lapônia ganhou Noel, mas não por isso a magia do Natal está livre de ameaças. Este ano, a falta de neve em Rovaniemi frustrou turistas que visitaram a região em pleno novembro, quando a temperatura máxima média é de -1 ºC. Tomara que o aquecimento global não acabe com a brancura lapã, mas, se essa desgraça acontecer, Noel não ficará sem teto. Sua filial em Gramado estará disponível.

Mais informações em https://santaclausvillage.info/

Em tempo: como este Natal promete ser um banquete indigesto de "fake news", aqui vai uma pílula inocente de informação para jogar no uísque do tiozão do pavê que resolver falar absurdos. Não, a Coca-Cola não inventou o Papai Noel como o conhecemos. O bom velhinho gordo, de barba branca, roupa vermelha e bonachão já era conhecido do público e já vinha sendo representado por artistas do século 20, como Norman Rockwell, antes do início da parceria entre Haddon Sundblom e a companhia de refrigerantes, em 1931. Segundo Gerry Bowler, em Papai Noel – Uma Biografia, "o gênio de Sundblom nas décadas em que ele trabalhou para a Coca-Cola não se manifestou em nenhum acréscimo que ele fez ao nosso conhecimento do Papai Noel, mas sim no fato de ele ter tornado ainda mais simpática e generalizada uma imagem que àquela altura já era familiar".

Feliz Natal.

Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.