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Terra à vista!

Aeroporto em ruínas é símbolo indesejado de Chipre, país dividido em dois

Felipe van Deursen

07/06/2020 04h00

(Crédito: Getty Images)

35º09' N, 33º16' L
Aeroporto Internacional de Nicósia
Zona de Intervenção da ONU, Lacatâmia, Chipre

Chipre anunciou recentemente que vai bancar as despesas médicas de turistas que forem infectados com o coronavírus na ilha. O governo do país mediterrâneo declarou que pagará acomodação, tratamento e alimentação do paciente e de sua família.

Soa como uma benfeitoria de níveis papainoélicos mesmo em tempos em que a pandemia parece estar implodindo velhas leis do Estado mínimo e do neoliberalismo? Pode ser, mas quando o turismo corresponde a 15% do PIB do país, atitudes precisam ser tomadas.

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Se a ousada medida surtirá efeito e, mais importante ainda, se ela não colocará em risco moradores locais e turistas, veremos mais para frente. O pico da pandemia ocorreu em abril, os casos estão em queda acelerada e o país somou até o momento somente 17 mortes (mesmo número de óbitos, no momento em que escrevo, do que Barra Mansa, mas com uma sonora diferença: a cidade fluminense tem população 10 vezes menor).

Ou seja, teoricamente, Chipre é um destino seguro em se tratando de covid-19. Até aqui, enquanto países continentais (EUA, Brasil, Rússia…) levam de 7 a 1, as ilhas têm lidado melhor com a doença. Chipre deve reabrir seus aeroportos na próxima semana, inaugurando um verão que promete ser histórico – e tenso.

Pois que abram os terminais e que permaneçam abertos e que dê tudo certo. O que Chipre menos precisa é de mais um Aeroporto Internacional de Nicósia.

O AEROPORTO ARRUINADO

(Crédito: Getty Images)

A história de Chipre concentra boa parte do melhor e do pior do encontro de grandes civilizações. Há 500 anos o território vive no embate e na conexão entre gregos e turcos. Antes, bem antes, micenos, assírios, egípcios e persas deixaram suas marcas nesta ilha repleta de praias e montanhas. Romanos legaram mosaicos, bizantinos, mosteiros. Até ingleses, além de genoveses e venezianos, também exploraram a posição estratégica de Chipre, no leste do Mediterrâneo.

Mas foi a conquista do Império Turco-Otomano, em 1571, que lançou a base do que é a ilha hoje. Foram mais de 300 anos de domínio. Com o colapso do império, no século 20, Chipre passou à mão dos britânicos, e um movimento nacionalista grego, Eoka, tentou anexá-lo ao país.

Em 1955, o Eoka iniciou uma campanha terrorista em Chipre. Quatro anos depois, cipriotas, gregos, turcos e britânicos aprovaram um plano de independência para a ilha, concluído em 1960.

Em 1974, oficiais gregos da Guarda Nacional Cipriota, ligados ao Eoka, derrubaram o presidente, Makarios III, um arcebispo ortodoxo grego. A Turquia respondeu invadindo o território e ocupando o norte da ilha. O golpe e a criação do Estado Federado Turco provocaram o êxodo de 200 mil grego-cipriotas, ao mesmo tempo em que 50 mil turco-cipriotas fugiram para o norte.

No meio da disputa entre os nacionalistas, estava o Aeroporto Internacional de Nicósia, a capital do país. O principal aeroporto de Chipre, construído na década de 1930, na época em que era colônia britânica, ainda pertencia à Força Aérea Real (RAF, na sigla em inglês). Durante a Segunda Guerra, ele foi ampliado para poder ser utilizado em missões dos Aliados – bombardeiros americanos usaram sua pista para atacar campos de petróleo na Romênia, aliada dos nazistas.

Em junho de 1974, havia planos para ampliar o terminal. Mas o golpe veio em 15 de julho e isso nunca aconteceu. Os golpistas usaram o aeroporto para transportar aliados gregos. No dia 18, o tráfego de civis foi retomado, criando cenas de caos, com veranistas e estrangeiros a trabalho tentando voltar para casa. Dois dias depois, os turcos invadiram Chipre e bombardearam o aeroporto.

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A área tornou-se palco da luta entre gregos e turcos. O Conselho de Segurança das Nações Unidas interferiu e criou uma zona de proteção. Ambos os lados precisaram recuar 500 m do perímetro do aeroporto  e, com a assinatura do cessar-fogo, surgiu a Linha Verde, uma zona divisória desmilitarizada que separa o sul, grego-cipriota, do norte, turco-cipriota.

(Crédito: Getty Images)

O último voo comercial aconteceu em 1977, quando a British Airways recuperou três aviões abandonados da Cyprus Airways. O aeroporto permaneceu inoperável, usado apenas por helicópteros da missão de paz da ONU em Chipre.

O país seguiu dividido nas décadas seguintes. Em 1983, a República Turca do Norte de Chipre (RTNC) foi proclamada, mas somente a Turquia a reconhece como um Estado independente. Em 2004, toda a ilha foi aceita na União Europeia, embora, na prática, isso só valha para a parte grega.

Três anos depois, o muro que separava as duas zonas na capital foi derrubado. Mas não se tratou de um Muro de Berlim, em termos simbólicos. A questão cipriota continua aberta e é, inclusive, um dos grandes entraves para a admissão da Turquia na UE.

São duas comunidades distintas que ainda não se entenderam. Sul e norte têm governo, idioma, moeda e religião majoritária diferentes. O lado turco, devido, em boa parte, ao isolamento internacional, é bem mais pobre que a porção grega.

Com o fechamento do aeroporto de Nicósia, os dois lados de Chipre precisaram de outros pontos de entrada e saída da ilha por via aérea. Em 1975, um novo aeroporto foi aberto em Larnaca, balneário com mesquitas e igrejas antigas, além de um assentamento do Neolítico reconhecido como patrimônio da humanidade pela Unesco.

(Crédito: Getty Images)

Em 2004, a RTNC inaugurou o seu em Ercan. Tanto o do lado grego quanto o do turco foram instalados em antigas bases aéreas da RAF.

Já o aeroporto de Nicósia vem sendo carcomido pelo tempo e pelo clima desde os anos 1970. Além das tropas da ONU, a única atividade aérea é exercida por pombos. Restam a poeira e as lembranças de um país que já foi um só.

 

Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.