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Bye, Nelson: Barbados remove estátua de militar e corta laços coloniais

Felipe van Deursen

15/11/2020 04h00

Estátua de Lorde Nelson (Crédito: iStock)

13º05'N, 59º36'O
Estátua de Lorde Nelson
Praça dos Heróis Nacionais, Bridgetown, Barbados

Dois mil e covid não foi um ano bom para zilhões de pessoas. Mas para alguns grupos tem sido ainda mais doloroso, dos seguidores de Donald Trump aos fãs de jazz, dos funcionários de companhias aéreas aos torcedores do Cruzeiro.

Foi um ano péssimo até para as estátuas. A onda de pedidos por reparação histórica e ataques a monumentos ligados ao passado colonialista e segregacionista, em diversas nações, é um dos marcos de 2020.

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Em poucos países isso foi tão simbólico como em Barbados. Em julho, em entrevista ao programa de TV inglês Good Morning Britain, a primeira-ministra do país caribenho, Mia Amor Mottley, declarou abertamente ser favorável à remoção da estátua do Almirante Nelson do centro da capital, Bridgetown.

Dois meses depois, o país anunciou que pretende virar uma república em 2021. Hoje, Barbados é uma monarquia parlamentarista que tem como chefe de Estado Elizabeth II, da mesma forma que Austrália ou Nova Zelândia, por exemplo. São antigas colônias britânicas, hoje independentes, mas que mantêm laços estreitos com o Reino Unido.

Mas por que Barbados decidiu mudar sua forma de governo? E o que Nelson, um militar, mais conhecido por sua participação nas Guerras Napoleônicas, tem a ver com isso?

(Crédito: iStock)

Podemos achar que monarquia nas Américas é algo que morreu com a nossa Proclamação da República, em 1889. Mas entre tantas repúblicas – repletas ou não de militarismo, reprises de Chaves (pelo menos até outro dia), petróleo, reggaeton, bananas, saliva e pólvora – há dez países no continente que têm uma chefe de Estado sentada em um trono em Londres, uma mulher que funciona como atração turística inglesa e que inspirou uma das melhores séries da Netflix. Isso sem contar os territórios e dependências que monarquias europeias mantêm no Caribe, como Bermudas e Turks e Caicos, que pertencem ao mesmo Reino Unido, ou Aruba e Curaçao (Países Baixos).

Barbados é um desses países. Os ingleses chegaram à ilha, habitada havia eras pelos povos arauaques e caraíbas, em 1627. Introduziram a cana-de-açúcar e trouxeram mão de obra escrava da África. Mesmo após o fim oficial da escravidão, em 1834, a elite canavieira manteve o domínio político local até meados do século 20.

O país conquistou a independência em 1966, mas manteve muitos elos com a antiga metrópole. Barbados é o destino caribenho que mais recebe ingleses, e já houve até um voo direto Londres-Bridgetown de Concorde – Barbados era o único destino permanente do famoso avião comercial supersônico fora do eixo Reino Unido-França-Estados Unidos. E o Concorde, apesar de ter sido criado em uma parceria entre franceses e britânicos, é reconhecido como um ícone do design inglês, por isso a presença de Bridgetown nessas rotas era emblemática.

Em 1813, Bridgetown ganhou uma estátua de bronze do Almirante Nelson. O monumento em Barbados foi criado pelo mesmo artista que concebeu a primeira estátua em homenagem a Nelson, em Birmingham, e é 30 anos mais antigo até que a grandiosa coluna dedicada ao líder militar na praça Trafalgar, em Londres.

A versão barbadiana foi instalada no cais de Bridgetown, o coração da economia da ilha. Aqui começam os problemas.

(Crédito: iStock)

Horatio Nelson (1758-1805) fez fama como o homem que derrotou ninguém menos que Napoleão Bonaparte. Ao liderar a vitória na Batalha de Trafalgar, ele impediu que os franceses controlassem o Canal da Mancha, invadissem a Inglaterra e ainda tomassem dos britânicos o controle do Atlântico. Nelson morreu na ocasião, e Bonaparte só sairia de cena dez anos mais tarde. Mas a vitória foi decisiva, alçando o almirante a um posto de mito em um país repleto deles. "Era algo como um santo secular na Grã-Bretanha moderna, um destemido herói naval que sacrificou a vida para salvar seu país da ameaça de Napoleão", explica o historiador inglês Joseph Yannielli no site The Conversation.

Após sua morte, Nelson inspirou peças musicais, pinturas e biografias. Alentou Churchill na Segunda Guerra. Virou estátua também em Dublin e em Montreal.

  • Mas o herói de guerra e gênio militar foi, também, um homem conservador, filho das elites de seu tempo, que via nas Índias Ocidentais o eixo estratégico do Império Britânico. "Ele endossou a fantasia racista de que a emancipação dos escravos resultaria no massacre de 'nossos amigos e companheiros súditos nas colônias'", escreve Yannielli.

O historiador pondera que escravocratas florearam o apoio de Nelson à sua causa, mas que o almirante não era um espectador passivo, pelo contrário. Não seria um acidente, portanto, que a imagem do militar tenha sido sequestrada por certos grupos da sociedade atual, da mesma forma que ocorreu com símbolos nacionais de outros países. Nelson virou, para muitos, um sinônimo de militarismo, imperialismo e supremacia branca.

Quando o coração econômico de uma colônia é o tráfico negreiro e o trabalho produzido por essas mesmas mãos escravizadas, a estátua de alguém que representava esse sistema poderia ficar mal vista com o tempo. Foi o que rolou, e bem antes do movimento "Vida Negras Importam".

(Crédito: iStock)

Em Barbados, temas raciais e políticos se entrelaçam, e a questão republicana está presente há décadas. Nos anos 1960, nas manifestações pela independência, a estátua já era alvo de protestos. O primeiro primeiro-ministro do país, Errol Walton Barrow, declarou, pouco após a emancipação, que Barbados não ficaria muito tempo "vagando em instalações coloniais".

Em 1998, uma comissão constitucional recomendou a transição da monarquia para o presidencialismo. No ano seguinte, a praça onde a estátua fica, no centro da capital, mudou de nome: de Trafalgar para National Heroes, em homenagem a heróis realmente nacionais.

Ainda em 1999, no festival de música Crop Over, o Carnaval do país, uma das músicas premiadas ecoou esse desejo. "Take Him Down", de Kid Site, é um politizado calipso que defende, com todas as letras, a derrubada de Nelson:

Em 2005, o governo anunciou a intenção de realizar um referendo com a população para tratar o tema. Seria em 2008, mas acabou não rolando. Em 2015, o então primeiro-ministro, Freundel Stuart, anunciou a transição para um futuro próximo. Então chegamos a 2020, com Mia Mottley confirmando a mudança para novembro de 2021.

A diferença é que, nos últimos anos, esse movimento deixou de ser apenas um aceno político e esteve presente com força nas ruas. O Nelson de bronze, mais uma vez, era o termômetro. Em 2017, a estátua ganhou uma nova legenda, pichada "racista supremacista branco".

Na época, o renomado historiador barbadiano Hilary Beckles escreveu um artigo no jornal local The Nation defendendo a remoção da estátua: "Nelson dedicou sua vida política e militar à causa de proteger a posse criminosa de 800 mil africanos escravizados durante sua vida. Os 85 mil negros escravizados aprisionados em Barbados só conheciam Nelson como líder da potência naval dedicado a mantê-los na escravidão. Os 15 mil donos de escravos que receberam Nelson no Caribe e comemoraram sua presença o fizeram porque seu maior medo era a liberdade dos negros."

No ano seguinte, o caldo entornou de vez com o escândalo Windrush, em que cidadãos britânicos nascidos em países caribenhos foram detidos e ameaçados de deportação do Reino Unido. Essas pessoas, que moravam no país havia mais de 45 anos, dentro de todas as normas e conformes, estavam sendo tratadas como imigrantes ilegais. Muitas eram barbadianas.

Em 2020, com a pandemia atingindo em cheio a economia de destinos turísticos, como Barbados, e com os movimentos contra o racismo chacoalhando a política em países dos dois lados do Atlântico, a pauta se fez ainda mais urgente. Mia Mottley anunciou a transição para república no ano que vem e também a intenção de estreitar seus laços africanos, abrindo embaixadas em Gana e no Quênia.

Já o destino de Nelson ficou para agora, segundo o site Barbados Today. A primeira-ministra anunciou a realocação da estátua para um museu na próxima segunda, 16 de novembro, Dia Internacional da Tolerância. Será o início simbólico de uma possível nova era para a "pequena Inglaterra".

(Crédito: iStock)

Não será a primeira vez que Nelson será "deposto" (até mesmo em Londres sua presença é alvo de debate). Em 1966, nacionalistas irlandeses derrubaram o colossal monumento ao almirante em Dublin. Até hoje o momento é lembrado, inclusive com algumas músicas que celebram o fato na república.

Em 2021, Barbados deve se juntar à Irlanda nesse renovado grito de independência. Se depender dos fãs, com direito a uma nova chefe de Estado, a sua rainha "de fato": Rihanna.

 

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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.