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Aranha na árvore, delícias à mesa e festa na rua: como é o Natal da Ucrânia

Felipe van Deursen

20/12/2020 04h00

49º50'N, 24º01'L
Praça Rynok
Lviv, Lviv, Ucrânia

Se a Igreja Católica baseia suas festividades no calendário gregoriano, proposto em 1582 pelo papa Gregório 13, as Igrejas Ortodoxas seguem o calendário juliano, criado em 45 a.C. na Roma de Júlio César. Uma das grandes diferenças disso é que, enquanto países de maioria católica ou protestante celebram o Natal em 25 de dezembro, os de maioria ortodoxa deixam a festa para 7 de janeiro.

É o caso da Ucrânia. Na noite de Natal, 6 de janeiro, a ceia tem pratos como kutia (pudim doce de trigo, mel, frutas), borscht (sopa de beterraba) e varenyky (também conhecido como pierogi, tipo de pasteizinhos cozidos, com diversos recheios). Famílias que seguem a tradição com mais afinco montam uma ceia com 12 pratos, em referência aos apóstolos.

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Ceia típica ucraniana, por Jacques Hnizdovsky

(Crédito: iStock)

Para quem não vive em Prudentópolis ou outra das cidades paranaenses de forte colonização ucraniana, esse cardápio pode ser todo um inédito e delicioso terreno a ser explorado. Tem potencial para se popularizar por aqui, é só ver que há receitas delas em uma penca de sites nacionais.

Já a decoração natalina ucraniana pode não ter tanto apelo assim, pelo menos não à primeira vista. É que a árvore tradicional, a yalynka, pode parecer mais um objeto de Dia das Bruxas do que de Natal, cheia de aranhas e teias. Mas é mera impressão.

Árvore de Natal na Ucrânia tem ornamentos de teias de aranhas para trazer bonança (imagem: wikicommons)

Há algumas versões para a origem do costume. Uma pobre viúva não tinha condições de enfeitar a árvore de Natal, o que entristecia seus filhos e os fazia chorar nas frias noites de dezembro. A viúva resolveu pendurar nozes e frutas em uma árvore do lado de fora da casa e rezou por um Natal de alegria e felicidade para as crianças.

Aranhas ouviram o clamor da pobre mulher e resolveram ajudar. Ao longo da noite, decoraram a árvore tecendo belas teias que, ao raiar do sol, brilhavam como ouropel prateado. Para os ucranianos, pavuk (aranha) é sinal de boa sorte no ano novo.

Existe outra versão, mais cristã. Quando a Sagrada Família estava fugindo do rei Herodes em direção ao Egito, precisou pernoitar em uma caverna. As aranhas, benevolentes que só, cobriram a entrada de teias, ludibriando os soldados que perseguiam Maria e José. "Se há teias por toda a boca da caverna, ninguém entrou aqui recentemente", eles pensaram. Assim, as aranhas salvaram o Menino Jesus.

Com tamanha contribuição, nada mais justo do que homenagear o aracnídeo na árvore de Natal, ao lado de ornamentos de papel, enfeites metálicos, maçãs, nozes, velas e doces. Mas a árvore propriamente dita é um costume que chegou à Ucrânia no século 19, vinda da Alemanha, país que moldou boa parte das tradições natalinas mais comuns hoje em dia. Da árvore enfeitada ao calendário do advento, passando pela troca de presentes na noite de 24 de dezembro: costumes que começaram entre os alemães.

Segundo um artigo do jornal The Ukrainian Weekly, publicação voltada às comunidades ucranianas da América do Norte, a yalynka chegou à Ucrânia para incrementar um ornamento da tradição local, didukh, um feixe de trigo e outros grãos que simboliza o Natal do país. Os espíritos dos ancestrais, que ajudam nas colheitas, visitam as casas nesses dias especiais. "Didukh é simbólico, yalynka é decorativo", ressalta a autora, Orysia Paszczak Tracz, que morreu em 2016 e era uma pesquisadora e autora especializada em etnologia ucraniana.

A aranha tem um forte simbolismo há eras no país. Canções festivas anteriores até mesmo à introdução do cristianismo falam que no princípio de tudo havia uma teia no mar. Elas mencionam envolver o mundo com essa teia e alimentá-lo e povoá-lo. É mitológico.

Além da aranha, outros símbolos do Natal ucraniano são semente de papoula, óleo de cânhamo, alho, feno e cabras. A festa se espalha para além dos lares, especialmente em Lviv, com sua parada natalina das estrelas, um desfile pelas ruas com estrelas artesanais ornamentadas e coloridas.

 

(Crédito: iStock)

(Crédito: iStock)

A cidade, a maior do oeste do país, preserva em sua arquitetura traços das antigas potências que a ocuparam, como o Império Austro-Húngaro. O belo centro histórico, declarado patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, fica branco de neve e enfeitado com outras atrações natalinas, como o mercado de Natal (mais uma influência alemã).

 

(Crédito: iStock)

(Crédito: iStock)

Só que não este ano, e nem preciso dizer o motivo. Então, que as aranhas tragam um bom Natal a todos e um 2021 melhor que 2020.


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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.