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Isso o Borat não mostra: o Cazaquistão que quer ressuscitar o Mar de Aral

Felipe van Deursen

10/01/2021 04h00

Porto em área seca de Aralsk, no Cazaquistão, em imagem de 2011 (Crédito: iStock)

46º48'N, 61º39'L
Antigo porto de Aralsk
Aralsk, Kyzylorda, Cazaquistão

O turismo do Cazaquistão chamou a atenção do mundo em outubro de 2020 ao, esperta e tardiamente, abraçar a divulgação estapafúrdia e improvável de Borat, cujo segundo filme (Borat: Fita de Cinema Seguinte) foi lançado às vésperas das eleições americanas. Bem diferente de 2006, com o primeiro longa. Na época, a reação oficial do país asiático foi reprimir a divulgação e condenar publicamente o conteúdo de Borat – O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América.

Borat, criado pelo ator Sacha Baron Cohen, britânico de origem judaica, é um repórter fictício, antissemita, misógino, racista, xenófobo, tosco e boçal. Esse pirulão é uma controversa usina de risadas politizadas e nervosas, herdeiro de uma longa linhagem de sátiras ao jornalismo.

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Em 1970, "Enfrente a Imprensa" foi um esquete do Monty Python que apresentava um aloprado programa de debates intelectualoides – mais aprofundado do que muito programinha de debate metido a game show na TV paga de hoje, pois mostrava embates como um ministro contra uma mancha marrom (!!!) — (tem na Netflix. Aqui, ó).

No Brasil, sobram exemplos. Casseta & Planeta, Urgente! tirava sarro dos telejornais da Globo já no próprio nome. Antes, também na Globo, a TV Pirata tinha o Casal Telejornal. Fora os vários esquetes jornalísticos do Hermes e Renato: "Jornal Jornal", "Documento Trololó" e "Boça Espetacular" esculhambavam o pior do gênero.

Tanto o primeiro quanto o segundo filme de Borat retratam um Cazaquistão irreal, forjado em uma visão imaginativa que tirou proveito da nossa ignorância árida e do nosso preconceito em relação a essa enorme ex-república soviética – ou melhor, a toda a Ásia Central. Não custa frisar. Não existe uma "farra do boi" com judeus representados como demônios e manter filhas do sexo feminino enjauladas não é uma prática corriqueira, para ficar só em dois exemplos.

Os filmes foram gravados na Romênia e o cazaque não está entre as línguas faladas. Os personagens falam em hebraico, búlgaro, romeno e polonês, além do inglês. Às vezes ao mesmo tempo, na mesma cena, o que deixa tudo mais bizarro.

Além disso, a bebida nacional não é urina de cavalo. Trata-se de mais uma sátira, embora neste caso haja um "tiquinho assim desse tamanhinho assim" de base real. O kumis, leite de égua fermentado, é uma iguaria dos países da região.

E AGORA PARA ALGO COMPLETAMENTE DIFERENTE

Embarcação no mar Aral, no Cazaquistão em foto de 2019 (Credito: iStock)

Um Cazaquistão relativamente mais conhecido e com uma história, por ora, bem-sucedida é o Cazaquistão do Mar de Aral. Um mar que na verdade é um lago, que na verdade era um lago, pois praticamente deixou de existir, em uma das maiores tragédias ambientais do século 20.

O Mar de Aral, localizado entre o Cazaquistão e o Uzbequistão, outra das antigas repúblicas soviéticas, já foi o quarto maior lago do mundo. A Paraíba inteirinha cabia dentro de seus 68.000 km². Então, nos anos 1960, a União Soviética teve a brilhante ideia de aumentar a produção de algodão uzbeque usando, para a irrigação, a água dos rios que alimentavam o lago.

Na década de 1930, a região já tinha uma produção de alimentos e algodão relevante, mas o salto que a URSS tentou implementar sugou o Aral. O Uzbequistão virou um dos maiores exportadores de algodão do mundo, é verdade, mas o preço para o "sucesso econômico" foi altíssimo.

O nível do lago caiu 20 metros em 20 anos. A mudança aumentou a salinidade da água, matou os peixes. Em 1987, o Aral já estava dividido em dois. O do Norte, no lado cazaque, e o do Sul, na porção uzbeque.

Além de devastar a indústria pesqueira, a morte do Mar de Aral veio acompanhada de altas taxas de câncer, tuberculose e anemia, graças ao uso abusivo de pesticidas nas plantações de algodão. Hoje, o Aral tem 10% da superfície de água que tinha há 100 anos. O solo exposto é alcalino, e os ventos da região carregam sal diretamente para narinas, pulmões e lavouras. Problemas respiratórios e falta de alimentos se acumulam.

Barcos abandonados enferrujavam no mar que virou deserto. Um cenário tão surrealista que inspirou o Pink Floyd a encerrar um silêncio de 20 anos e voltar a fazer um videoclipe. Em 2014, a banda lançou "Louder than Words", gravado em Aralsk, no Cazaquistão:

O diretor do clipe, o designer Aubrey Powell, queria gravar nos dois países, mas para filmar no Uzbequistão é preciso ser convidado por uma empresa local, como ele explicou, à época, ao site Radio Free Europe. A burocracia uzbeque se contrapunha ao relativo liberalismo cazaque, segundo o diretor, que chegou ao país e gravou tudo em apenas uma semana.

Além de uma homenagem ao tecladista Richard Wright, morto em 2008, e de usar a morte do Aral para marcar o fim da própria banda, "Louder than Words" acabou sendo um registro de um cenário apocalíptico que não existe mais. Pelo menos não dessa forma, pois a prefeitura de Aralsk ordenou, nos anos seguintes, a remoção dos barcos abandonados.

Ruínas de barco de pesca, em Aralsk, Cazaquistão, em foto de 2015 (Crédito: iStock)

Além disso, o cenário como um todo pode ver dias melhores. O Cazaquistão vem, desde o começo do século, investindo, com apoio da Unesco e do Banco Mundial, na revitalização do Mar do Norte de Aral.

Com melhorias nos canais do rio Sir Darya e a restauração de uma barragem, o nível de água do Norte de Aral voltou a subir a partir de 2006, quando Borat apresentou ao mundo seu ridículo país imaginário. Naquele ano, a produção pesqueira de Aralsk registrou 1.360 toneladas, segundo a BBC Future. Em 2016, o número já era de 7.106 toneladas de peixe. Uma segunda etapa do programa de revitalização foi anunciada recentemente, com a plantação de 177,5 milhões de árvores que combatem a desertificação.

Aralsk, que no fim do século passado respirava por aparelhos, parece ter reencontrado o caminho que a fez crescer desde 1905, com a chegada da ferrovia e o início da indústria da pesca e da construção de barcos. A estação de trem da cidade tem um mosaico que mostra, em 1921, os peixes de Aralsk alimentando povos famintos na Rússia.

O caminho ainda é longo. O desemprego é alto, a saúde pública é preocupante e toda uma geração de habitantes cresceu sem ver o mar das janelas da cidade.

Adolescentes brincam no porto marítimo abandonado em Aralsk, Cazaquistão, em foto de 2011 (Crédito: iStock)

Hoje, a distância do Aral dessa outrora cidade costeira é de cerca de 15 km. Bem menos do que os 100 km que ela chegou a ter nos piores momentos.

O futuro de Aralsk parece ser mais iluminado do que o de Muynak, antiga cidade pesqueira do Uzbequistão, do outro lado do antigo Aral. Devastada e abandonada por causa dos erros envolvendo a produção algodoeira, ela está condenada.

As notícias também não são promissoras para o Mar Cáspio. O maior lago do mundo, dividido entre cinco países (Cazaquistão entre eles), pode perder até um terço de sua superfície até 2100, por causa do aquecimento global.

Se o Aral foi um desastre do século 20, o Cáspio pode ser no 21. "Not very nice."

 

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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.