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Cachoeira de Sangue: descoberta foi uma saga de disputas, tragédia e sorte

Felipe van Deursen

14/03/2021 04h00

Uma visão do inferno? Foto: Peter Rejcek/National Science Foundation

77º43'S, 162º'16'L
Cachoeira de Sangue
Geleira de Taylor, Vales Secos de McMurdo, Antártida

No começo do século passado, a Antártida era o último território a ser desbravado por exploradores neste planeta. Somente a corrida espacial, décadas depois, a superaria em termos de rivalidade política e ousadia científica. As pessoas acompanhavam excitadas nos jornais as notícias das expedições em busca de respostas como a localização exata do Polo Sul ou se o que existe "lá embaixo" é um grande continente, duas massas de terras menores ou apenas um mar congelado.

A disputa mais cativante da época se deu entre Robert Falcon Scott e Roald Amundsen. Scott, capitão da Marinha Real Britânica, ficou famoso em 1902 por ter sido o homem que foi mais ao sul do que todos os outros, ao liderar a expedição que descobriu o Planalto Antártico, onde fica o Polo Sul, e alcançar a latitude recorde de 82ºS. Amundsen, explorador norueguês, foi o primeiro homem de que se tem registro a cruzar a Passagem do Noroeste, a via marítima que conecta o Atlântico e o Pacífico através do Ártico. Em 1909, ele contornou uma série de estreitos, venceu o gelo e virou uma lenda.

Robert Falcon Scott, um dos mais famosos exploradores britânicos

Roald Amundsen, o detonador dos polos

Em 1911, Scott anunciou uma nova expedição para vencer os oito graus restantes e chegar, enfim, ao Polo Sul. Ele estabeleceu duas bases e já estava com os preparativos adiantados quando soube que Amundsen também estava na disputa. Amundsen desejava, originalmente, atingir o Polo Norte, mas teria sido vencido por dois americanos: Robert Peary e Frederick Cook chegaram lá antes, em viagens separadas (o que foi motivo de debate por muito tempo, mas anos depois evidências indicaram que nenhum dos dois chegou ao Polo Norte).

Amundsen estava fora do jogo na corrida pelo Polo Norte, então migrou seu desejo por glória eterna para a Antártica. A pressão recaía sobre Scott.

Em 20 de outubro de 1911, Amundsen partiu com uma equipe de cinco homens e 52 cachorros. Logo chegou a territórios desconhecidos, subiu a geleira Axel Heiberg e, perto do topo, precisou matar 24 cães, que serviram de comida aos restantes (e aos exploradores). A situação estava longe de ser tranquila, como se vê.

Scott não baseou seu transporte apenas em cachorros. Pôneis, trenós motorizados e os próprios braços e pernas dos homens, puxando os trenós, deveriam dividir a missão, que tinha um caráter parte exploratória, parte científica. Scott e mais cinco seguiram o caminho traçado em 1908 por um ex-subalterno, Ernest Shackleton, que bateu seu recorde e chegou a 88ºS – só não atingiu o Polo Sul por falta de comida.

Outros membros da expedição tiveram objetivos diferentes. O experiente geógrafo Thomas Griffith Taylor liderou o time de geólogos, que deveria mapear regiões então desconhecidas, especialmente nos Vales Secos de McMurdo.

Thomas Griffith Taylor, explorador e cientista australiano, nascido na Inglaterra

Lá, Taylor encontrou uma das paisagens mais tétricas do planeta: um fluxo de água cor de sangue que brota da geleira (que ganharia o nome do cientista). Taylor acreditou que a vermelhidão era causada por algas na água. Por muito tempo, essa era a hipótese mais aceita.

Reprodução Instagram

Em 2018, um estudo mostrou que esse líquido que borbulha das fissuras de uma geleira onde a temperatura média é de – 17ºC não é obra de algas, mas de óxido de ferro. Com um radar para escanear o interior da geleira, os cientistas descobriram uma rede de rios e um lago subglaciais cheios de salmoura e ferro.

A água salgada congela a uma temperatura mais baixa que água pura e libera calor à medida que congela. Por isso, ela derrete a geleira por dentro, fazendo com que o feixe de água escorra. Já a vermelhidão é causada pelo ferro.

Há cerca de 2 milhões de anos, a geleira englobou um bolsão de água que continha uma comunidade microbiana. Isolados do resto do planeta por uma vastidão de gelo, em um ambiente sem luz, calor e oxigênio livre, os micróbios se transformaram em uma espécie de cápsula do tempo, que mostra como era a vida na Terra em um tempo em que o Homo habilis aprendia a usar ferramentas de pedra lascada na África.

Reprodução Instagram @aweinspiringplaces360

A Cachoeira de Sangue pode até ter um nome cativante, que salta aos olhos de jogadores de RPG, ouvintes de death metal, turistas extremos e jornalistas sedentos por títulos chamativos, mas quem se interessa mesmo por ela são os cientistas. Isso graças a uma descoberta inesperada, em uma jornada cheia de riscos para Taylor.

Em janeiro de 1912, a equipe estava pronta para retornar, à espera do barco de apoio do navio Terra Nova. A embarcação não pôde alcançá-la, então o time precisou esperar três semanas, até que resolveu ir andando. Os homens de Taylor caminharam por 13 dias no gelo até serem localizados pelo Terra Nova.

Só depois o geógrafo teve noção real do tamanho da sorte que tivera. Em 17 de janeiro, dois dias depois que eles iniciaram a espera pelo resgate, a equipe de Scott atingiu o Polo Sul. Seria uma vitória épica não tivessem eles encontrado um registro de que Amundsen, ao lado de Helmer Hanssen, Olav Bjaaland, Oscar Wisting e Sverre Hassel, chegara antes.

Equipe do capitão britânico Robert Falcon Scott descobriu que o norueguês Roald Amundsen tinha chegado um mês antes ao polo sul

Desapontados, os cinco iniciaram o caminho de volta. A decepção era o menor dos problemas. Comida e combustível estavam perto do fim, o escorbuto começava a aparecer, o frio e o vento faziam de cada passo uma tormenta.

Em meados de fevereiro, um dos homens de Scott, Edgar Evans, morreu próximo a uma base. Um mês depois, Lawrence Oates, sofrendo com a gangrena que tomava seu corpo, saiu da barraca no meio de uma nevasca. A atitude foi interpretada como um sacrifício para tentar dar mais tempo aos camaradas para se salvarem, pois ele sabia que não sobreviveria, naquelas condições, a uma tempestade.

Reprodução Instagram @rachelheckerman

O heroísmo de Oates fez bem a sua biografia e à história da missão, mas não adiantou muito para os colegas. Scott, Henry Bowers e Edward Wilson foram forçados a permanecer na tenda devido ao mau tempo, mesmo estando já próximos, 18 km, de uma base bem abastecida.

Assim ficaram. Seus corpos foram encontrados na primavera seguinte.

Scott morreu carregando um bilhete em que Amundsen pedia que informasse o rei da Noruega caso ele não conseguisse sobreviver ao caminho de volta para dar as boas novas ao monarca pessoalmente. Era verdade esse bilhete, pois, com ele, havia uma carta escrita por Amundsen. Ela era endereçada a Sua Majestade Real Haakon VII da Noruega e descrevia como, em 14 de dezembro de 1911, os cinco homens da Expedição Fram chegaram ao Polo Sul com dois trenós e 16 cachorros, fincaram a bandeira da Noruega e batizaram o Planalto Antártico com o nome do rei.

A Cachoeira de Sangue talvez tenha salvado a vida de Taylor, que viveu o resto da vida plenamente. Tornou-se um prolífico intelectual, criou polêmicas com seus textos sobre raça e geografia, mudou-se para os Estados Unidos, retornou à Austrália e morreu aos 82 anos, em 1963.

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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.