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Em Ruanda, a expressão "não aguenta, bebe leite" não faria o menor sentido

Universa

18/04/2021 04h00

(Crédito: Reprodução/Instagram)

1º58'S, 30º03'L
Kuruhimbi
Nyarugenge, Kigali, Ruanda

Ruanda tem um considerável consumo de bebidas alcoólicas per capita. Em 2016, segundo a Organização Mundial da Saúde, eram 9 litros de puro álcool por habitante ao longo do ano (mais que o Brasil, com 7,8 l, e um pouco menos que o Chile, com 9,3 l). O aumento da bebedeira gera preocupação em autoridades quanto à saúde pública e ao desenvolvimento do país, segundo o jornal local The New Times.

Isso torna ainda mais curioso o fato de que esse pequeno e montanhoso país na região dos Grandes Lagos Africanos tem uma tradição um tanto abstêmia: os bares de leite. Em tais estabelecimentos, álcool não tem vez. Eles não são populares porque funcionam como zonas livres de álcool para aqueles que desejam distância do bafo e das dores do mé (pelo menos não originalmente). O sucesso está na elevada estima e mais distinta consideração reservada, na sociedade ruandesa, à fonte que mantém copos cheios. Sua excelência, a vaca.

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Tradição ruandesa, os bares de leite servem de ponto de encontro em diferentes horas do dias. Os convivas brindam com copos do espumoso, denso e frio ikivuguto (leite fermentado), finalizado com mel ou açúcar, ou então com uma caneca quente do amarelado inshyushyu (leite cru fervido).

"Ao longo dos séculos, a vaca ganhou importância em todas as áreas da cultura do país. Em todas as atividades sociais associadas às vacas (linguagem, cerimônias, discursos, costumes e tabus em sua homenagem), o valor simbólico dos animais transcende seu valor econômico. No entanto, as vacas foram exploradas durante séculos pelo povo ruandês por sua carne, pele e leite", explica o biólogo ruandês Eugène Karenzi, especialista em ciências agrárias, na publicação científica Base, ligada à Universidade de Liège, na Bélgica.

A popularidade desses estabelecimentos, e do leite, é reflexo de um país em que 70% da população trabalha na agricultura. Vacas estão em expressões de boa sorte, inspiram danças e elogios à beleza. Em casamentos tradicionais, vacas faziam parte do dote pago à família da mulher. Quando essa vaca tivesse cria, os recém-casados ganhavam o bezerro. Até 1954, vacas eram usadas como moeda.

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Mas, por outro lado, vender leite era um tabu, por causa de uma prática iniciada no século 17. O rei Mibambwe Ginasura decretou que famílias de elite deveriam compartilhar o excedente de seu leite com os mais pobres. Somente no começo do século 20, quando o país integrava a África Oriental Alemã, as pessoas começaram a aceitar o leite como um produto. Vítimas de trabalho forçado em obras de infraestrutura na colônia, os ruandeses viajavam longas distâncias e acabavam comprando leite de ugandeses, sudaneses e tanzanianos. Ao retornarem para casa, eles disseminaram o comércio aos poucos, segundo a BBC.

Então veio a tragédia maior, o devastador genocídio de 1994, que matou mais de 937 mil pessoas em três meses – comparação sinistra: o Holocausto precisou de cinco vezes mais tempo para atingir essa marca. No meio do caminho, 90% das vacas do país foram exterminadas, de acordo com o Unicef, que apoiou um projeto do governo nos anos 2000 de doar um animal a cada família pobre.

(Crédito: iStock)

A popularização dos bares de leite foi uma consequência da quase total eliminação das vacas e, depois, da urbanização e da modernização aceleradas que Ruanda começou a experimentar após o genocídio (em 20 dos últimos 25 anos, o PIB do país teve crescimento superior a 5%, segundo o Banco Mundial). Com mais gente vivendo nas cidades, o espaço para as vacas diminuiu, especialmente na capital, Kigali. Então, os bares passaram a suprir essa demanda das classes urbanas por um leite fresco em vez do líquido insosso e pasteurizado vendido nos mercados.

Mas, conforme as facilidades da vida moderna se espraiaram pelo cotidiano dos ruandeses, menos gente dependia desses estabelecimentos para tomar leite, pois preferia, justamente, a bebida pasteurizada e industrializada, por motivos práticos: mais fácil de carregar, validade maior etc. Além disso, o programa alimentar de doar vacas fez com que muitas pessoas dispensassem as idas regulares aos bares de leite. Estima-se que cerca de 400 mil animais tenham sido distribuídos. Por fim, o lançamento de uma rede de bares de leite do governo dificultou ainda mais a existência das lojas independentes.

Por conta disso, o auge da popularidade dessas casas já ficou para trás, lá para a virada do século. Mas bares como Kuruhimbi seguem importantes e coloridos, como se fossem bastiões do leite "raiz", em contraponto aos bares estéreis e "leite com pera" do governo.

O simples fato de haver esse poder de escolha já deixa claro. Dias melhores chegaram.

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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.