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Terra à vista!

Como pescadores construíram igrejas que viraram patrimônio da Unesco

Universa

23/01/2019 15h43

A igreja de Achao é rústica por fora e ornamentada por dentro. Tudo de madeira. (foto: Felipe van Deursen)

42º48'S, 73º76'O
Chiloé
Los Lagos, Chile

Um arquipélago que fica na mesma região que Puerto Varas e Pucón, a apenas 3h30 de ônibus de Puerto Montt, mas que tem bem pouco a ver com essas cidades. Chiloé não tem vulcão, turismo sofisticado de aventura, colonização alemã nem sobremesas fofas. Em vez disso, tem uma rica cultura formada por séculos de gerações de pescadores, indígenas e europeus, uma mitologia própria e um prato típico feito com pedras quentes no chão há milhares de anos.

Os espanhóis ali chegaram em 1558, deparando-se com huilliches, cuncos e chonos. Batizaram o arquipélago de Nova Galícia, mas o nome que pegou foi Chiloé ("lugar de gaivotas"). No século 18, eles fundaram, no norte da Ilha Grande de Chiloé, a cidade de Ancud, cujo forte teria papel estratégico na exploração e proteção do Pacífico Sul. O isolamento da ilha fez dela um dos focos de resistência dos colonizadores no processo de independência. Simon Bolívar chegou a pressionar o novo governo chileno para resolver a questão, ameaçando anexar Chiloé ao Peru caso Santiago não desse cabo do assunto. Mas, oito anos depois, em 1826, o arquipélago passou a integrar o território do novo país.

Pouco depois, a excelência dos habitantes locais na construção de barcos se fez valer. O primeiro navio de guerra chileno teve mãos e madeiras chilotas na construção e na tripulação para a conquista do Estreito de Magalhães, em 1843.

O talento na arquitetura naval ganhou um desdobramento único com os jesuítas. No processo de catequização das tribos locais, eles decidiram erguer um circuito de igrejas pelo arquipélago, de forma que pudessem passar por várias comunidades ao longo do ano e que cada uma tivesse papel especial em alguma data importante do calendário litúrgico.

Mas, para construir tantas capelas e igrejas, eles precisavam se virar com a falta de materiais. Aí entrou o talento dos arquitetos autodidatas chilotas, que colocaram seus conhecimentos para fazer barcos em nome da fé. A grande sacada era virar uma embarcação de cabeça para baixo. Aí, o casco se transformava na a nave da igreja. Daí eles seguiam o jogo e desenhavam arcos, pórticos, torres, corredores.

Por isso as construções mais tradicionais têm o teto abobadado, feito barcos. Isso tudo usando apenas as madeiras e pedras da ilha, com pouco ferro ou outros materiais a mão. Algumas nem prego têm.

Pode não parecer, mas as igrejas chilotas são resistentes. Lembremos que elas ficam na costa do Chile (protegidas do mar aberto, mas ainda assim em um arquipélago do Pacífico), país que já passou por, entre outros, o maior terremoto já registrado pela escala Richter, o de Valdívia, em 1960. Elas apanham, se danificam, mas seguem lá, nesse cenário bucólico, um tanto lúgubre. Algumas das igrejas ficam no meio do nada e basta uma névoa para você se sentir no cenário de um filme antigo de pirata — ou de terror.   

Estive em Chiloé há dois meses. O arquipélago atrai turistas por essa mistura de natureza e cultura peculiar, o que fica explícito nas suas igrejas. São mais de 100 e, desde 2000, 16 delas têm a chancela da Unesco como patrimônios culturais da humanidade.  

Se você se interessou, verá em qualquer blog ou site de viagem bom que deve evitar os passeios bate-volta que partem de Puerto Varas e região. De fato, não compensa. A Ilha Grande de Chiloé é a quarta maior da América do Sul (os locais falam orgulhosos que é a segunda, atrás somente da Ilha Grande da Terra do Fogo, porque se esquecem das gigantes fluviais brasileiras, Marajó e Bananal, 2ª e 3ª na lista). São 8,4 mil km² (ou quase 20 ilhas de Santa Catarina), então você precisa de uns dias para ver as igrejas, as aves e outras atrações naturais e comer o curanto.

Sim, o tal prato de milhares de anos que falei lá em cima é o curanto. "Curanto" é mais o modo de preparo do que a comida em si. Trata-se de uma tradição que nasceu em Chiloé e se espalhou pelo sul do Chile e da Argentina, em que os ingredientes são cozidos em um buraco no chão com pedras quentes e cobertos com as folhas grossas de uma planta rasteira local, a pangue. Na versão atual do curanto chilota, prepare-se para uma montanha de diversos tipos de batatas locais, mariscos, carnes variadas (embutidos, frango) e quitutes típicos, como milcaos e chapaleles (ambos à base de batata). É para iniciados na arte da cozinha ogra.

Vamos agora dar um passeio pelas 16 igrejas patrimoniais de Chiloé.

 

PS.: já é o quarto post deste novo blog e ainda não me apresentei. Muito prazer, eu sou o Felipe. Verá que este é um blog de viagem um pouco diferente. Menos serviço e dicas, mais história. Se você é do tipo que visita as seções de guia de viagem das livrarias, que não resiste a um mapa (analógico, digital, antigo ou contemporâneo), que gosta de descobrir a história de qualquer lugar, da sua esquina, daquela ilha aonde você ainda vai um dia ou daquela vila medieval que ninguém ouviu falar, e, especialmente, se você abomina a ideia de viajar para um lugar, não importa qual, e não ler NADA a respeito dele ("para ser surpreendido" pfff), acredito que vá se identificar. Comente, mande sugestões, dê ideias nos comentários. Só não esqueça a gentileza, a internet já está atolada de ódio.

Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.