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Terra à vista!

O resort de luxo criado no país mais desigual do mundo para ter striptease

Felipe van Deursen

10/05/2019 13h55

(foto: iStock)

25º20'S, 27º06'L
Resort Sun City
Noroeste, África do Sul

O apartheid, o deplorável regime segregacionista da África do Sul, foi implementado em 1948, mesmo ano em que Mahatma Gandhi foi assassinado na Índia e ninguém ganhou o prêmio Nobel da Paz. Grande ano!

Na década de 1970, a política racista sul-africana ficou ainda mais rígida. O primeiro-ministro B.J. Vorster aprovava uma série de leis que classificava e separava os negros em grupos étnicos.

O auge dessa medida de segregação foi o confinamento em massa em territórios tribais, os bantustões. Quatro desses bantustões chegaram a ser declarados países independentes, o que não foi reconhecido por ninguém além da própria África do Sul. Um desses bantustões era a República de Bophuthatswana.

Bophuthatswana era uma série de áreas salpicadas ao norte do território sul-africano. Se um país geograficamente separado já complica, imagine um geograficamente separado que foi imposto por um governo oficialmente racista apenas para concentrar e isolar os tswana (o nome do país significa, literalmente, "reunindo o povo tswana").

A ONU considerou deplorável a criação de Bophuthatswana, que passou toda sua existência no isolamento quase total. Apesar disso, a revista americana Time falou do potencial econômico do novo país e Bophuthatswana chegou a ter relações diplomáticas com Israel.

Em 1979, um magnata resolveu empreender ali. Sol Kerzner quis aproveitar a proximidade do território de cidades como Johanesburgo, a maior da África do Sul, e Pretória, a capital administrativa, para criar um ousado complexo hoteleiro.

(foto: iStock)

Além da óbvia vantagem de estar perto de metrópoles, o hotel teria outro trunfo na manga: o lugar mais próximo de Johanesburgo onde o jogo e o striptease eram permitidos.

Com essa pegada mais "sin city" do que "sun city", o resort foi erguido ao lado de um parque nacional, onde leões, leopardos, rinocerontes-negros, elefantes, búfalos-africanos, guepardos, zebras, impalas, gnus e centenas de espécies de aves podem ser avistados em um dia de sorte no safári. Estátuas representam os grandes animais africanos no paisagismo do complexo, que tem ainda um enorme labirinto no jardim e uma praia artificial.

(foto: iStock)

Tanto luxo entrou na mira das manifestações contra o apartheid. Era preciso engajar o mundo para combater esse absurdo. Nos anos 1980, a forma como os países ricos faziam isso eram as músicas de protesto, que  geralmente reuniam medalhões de estilos muitas vezes incompatíveis.

Pouco depois da formação da Band Aid e no mesmo ano do Live Aid, uma nova constelação se uniu para falar da África. O time contava com (respire fundo): Afrika Bambaataa, Bob Dylan, Bruce Springsteen, George Clinton, Herbie Hancock, Jimmy Cliff, Joey Ramone, Lou Reed, Keith Richards, Miles Davis, Pete Townshend, Peter Gabriel, Ringo Starr, Ronnie Wood, Run DMC e U2, entre outros (sim, ainda tem espaço para "entre outros").  

O cabeça da empreitada era Steven van Zandt, guitarrista da E Street Band (a banda de Bruce Springsteen), e, mais tarde, um dos principais atores de Família Soprano. Ou seja, aquele tipo de artista que muita gente demora para se ligar do quão importante e bom ele é.

O resultado é "Sun City", uma mistura de hip-hop, R&B e hard rock extremamente oitentista:

A música dizia "não vou tocar em Sun City" como um pedido de boicote à África do Sul e ao resort. Porque, naquele ano de 1985, Sun City já ostentava uma longa lista de artistas que passaram pelo seu palco: Frank Sinatra, Elton John, Ray Charles, Beach Boys e Queen. Por ser uma mancha no currículo do Queen, o show da banda sequer é mencionado no filme de Freddie Mercury, assim como muitos outros detalhes importantes.

A década de 1990 chegou, o mundo mudou, o apartheid caiu, Nelson Mandela saiu da prisão e foi eleito presidente. Mas, em mais uma medida de tentar unificar o país, ele não condenou o hotel. Em vez disso, pediu a ajuda de Kerzner. O Sun City hospedou visitas importantes, chefes de Estado entre elas, no Sun City, para a cerimônia de posse. Era 10 de maio de 1994, exatos 25 anos atrás.

Naquele mesmo ano, Bophuthaswana e todos os outros bantustões foram extintos e reintegrados à África do Sul. Seria um final feliz.

Mas, hoje, na semana em que o partido de Mandela deve vencer as eleições presidenciais, o país continua no topo do ranking das nações mais desiguais do mundo. O caminho é longo.

Ah, o hotel segue em funcionamento e é um dos mais famosos da África do Sul. Mais informações em: www.sun-city-south-africa.com 

Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.