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Porto de Beirute: 3,5 mil anos de história agredidos pela negligência

Felipe van Deursen

16/08/2020 04h00

33º54'N, 35º31'L
Porto de Beirute
Beirute, Líbano

A logomarca da Gestion et Exploitation du Port de Beyrouth já entrega que aquele não é um porto qualquer. Com um barco fenício estilizado, ela escancara a herança que essa civilização pioneira deixou para os libaneses.

O atual Líbano abrigou na Antiguidade a Fenícia, povo organizado em cidades-Estado independentes que desenvolveu o sistema de escrita que está na base do alfabeto latino. Além disso, os fenícios, cuja cultura floresceu por mais de 2 mil anos, ficaram famosos por suas técnicas de navegação, o que lhes permitiu fundar colônias na costa mediterrânea.

No século 15 a.C. já havia menções, na correspondência trocada entre fenícios e faraós egípcios, ao porto de Beirute. Quando os romanos conquistaram o Levante (termo histórico para se referir ao leste do Mediterrâneo), no século 1 a.C., fizeram de Beirute um polo econômico regional. Graças à localização privilegiada e ao talento para explorar o mar e fazer comércio, algo que já se destacava havia séculos.

Mais tarde, quando o Califado Omíada – segundo dos quatro grandes impérios islâmicos instituídos após a morte de Maomé – anexou a região, entre os séculos 7 e 8, Beirute virou o centro de comando de sua frota. Em 1110, o Reino de Jerusalém, criado após a vitória cristã na Primeira Cruzada, conquistou a cidade. O estado cruzado durou até 1291, ano em que o Sultanato Mameluco do Egito tomou o Líbano.

Fossem cristãos ou muçulmanos, os senhores da cidade sempre exploraram sua posição geográfica para os negócios entre Ocidente e Oriente ou para receber peregrinos religiosos. Uma vocação.

O AUGE. E A QUEDA

(Beirute, em ilustração do século 19. Crédito: iStock)

Na década de 1820, Beirute se estabeleceu como um importante porto do Império Turco-Otomano, conectando os produtos do Valiato da Síria com o resto do mundo por meio do Mediterrâneo. Na época, Líbano e Síria eram uma província só. Um registro francês de 1826 descreve a cidade como uma metrópole pulsante, "o entreposto comercial das Índias Orientais, Pérsia, China e toda a Arábia". Nos anos 1830, ela cresceu rapidamente como centro comercial entre a Síria e a Europa.

O atual porto, aquele que foi pelos ares e rodou o mundo em vídeos de celular, é da década de 1880. Maior, mais moderno e com uma linha de trem conectando-o a Damasco. A rápida expansão estimulou o desenvolvimento de serviços bancários e a atmosfera liberal de Beirute, bem como sua oferta de entretenimento, a tornou mais atrativa como uma cidade de negócios – lícitos e ilícitos, frisa o jornalista americano Jonathan Marshall no livro The Lebanese Connection (sem edição brasileira).

"Visitantes que chegavam ao porto no século 19, no começo do auge de Beirute", escreve o jornalista e historiador inglês Justin Marozzi, filho de libanês e autor de livros sobre o mundo islâmico, "tinham seus olhos inexoravelmente atraídos pelos ciprestes, alfarrobeiras, sicômoros, opúncias, pés de figo e romãs da cidade pequena, depois para as bananeiras, oliveiras retorcidas, laranjeiras, limoeiros e amoreiras para além dela e para cima, em direção aos robustos pinheiros nas encostas do Monte Líbano". O mundo se apaixonou por Beirute, diz Marozzi. Era a confirmação de uma fama de beleza que se alongava desde tempos bíblicos.

Voltemos aos símbolos. Existem outros países e territórios com árvores na bandeira (Guiné Equatorial, Guam, Fiji ou Haiti, por exemplo, sem esquecer do Rio Grande do Norte), mas quantos dão a elas tamanho destaque? Além da bandeira do Líbano, a única que se compara, nesse quesito, é a da Ilha Norfolk, território australiano no Pacífico. (se esqueci de alguma, diga nos comentários, por favor, mas sem xingar).

(Costa libanesa. Crédito: iStock)

O porto foi, sempre, o coração econômico de Beirute, que transformou uma então cidadezinha acanhada em uma metrópole alegre, pulsante e cosmopolita. "O duradouro gênio de Beirute para o comércio fez com que a cidade prosperasse no comércio mediterrâneo, exportando seda e matérias-primas e importando os produtos do mundo, de camisas de algodão feitas em moinhos na Inglaterra a café do Brasil", continua o artigo de Marozzi, publicado no site emiradense The National.

Em 1898, o kaiser Guilherme II e a imperatriz Augusta Vitória encantaram-se com a cidade. O casal real alemão sintetizou: "é a joia da coroa do Império Turco-Otomano".

No entanto, pouco depois, na década de 1900, segundo um relato, o porto não vivia seus melhores dias. Gregos, malteses e "marinheiros encrenqueiros de todas as nações vêm infestar o povo do Levante".

Xenofobia à parte, a região portuária estava degradada. O governo, então, implementou um grande processo urbanístico na área, que ganhou prédios de arquitetura europeia. Quando o Banco Imperial Otomano inaugurou sua filial ali, o recado estava dado: o dinheiro estava chegando e, com ele, os cafés, restaurantes e toda a boemia.

Região portuária de Beirute, por volta de 1906

Outro marco foi a inauguração da Orosdi Back, luxuosa rede franco-egípcia de lojas de departamento que marcou época em diversas cidades mediterrâneas. Viajantes, fotógrafos e flâneurs descobriram a área, seus cais e calçadões. A região adquiriu uma "multiplicidade de estilos e um contraste harmonioso", diz Jens Hanssen, especialista em Oriente Médio e professor na Universidade de Toronto, no livro Fin de Siècle Beirut: The Making of an Ottoman Provincial Capital.

A sofisticada loja da Orosdi Back, no começo do século 20

Líbano e Síria ficaram sob mandato francês após o colapso do império, depois da Primeira Guerra. Em 1941, o Líbano tornou-se independente, o que não foi reconhecido pela Síria. O novo país caracterizava-se por ser um caldeirão étnico e religioso, habitado por cristãos (maronitas, ortodoxos, gregos católicos e armênios) e muçulmanos (sunitas, xiitas e drusos, além dos refugiados palestinos, a partir dos anos 1960). Tudo isso em um território que é a metade de Sergipe, o menor estado brasileiro.

Em 1975, uma coalizão muçulmana entrou em guerra contra os cristãos. Foi uma longa e sangrenta guerra que envolveu também os vizinhos Síria e Israel. Até então, o porto de Beirute tinha papel central na economia do Oriente Médio. Quando a Guerra Civil começou, no entanto, ele virou campo de batalha.

Para completar, em 1982 os israelenses invadiram o país. Durante o Cerco de Beirute, no verão daquele ano, boa parte da cidade foi destruída e as atividades do porto se reduziram drasticamente. Em 1974, o total de carga carregada chegou a 668 mil toneladas. Em 1983, esse número caiu para 105.640, segundo Lebanon: Current Issues and Background, editado por John C. Rolland.

O RECOMEÇO. E NOVAS QUEDAS

Zaitunay Bay, área badalada próxima ao local da explosão em Beirute (Crédito: iStock)

A partir do fim da Guerra Civil, em 1990, o fluxo de turistas estrangeiros foi, como não poderia deixar de ser, um reflexo da história recente.  O número de desembarques internacionais subiu de 400 mil em 1995 para 1,2 milhão em 2004. Caiu até 2007, em decorrência do atentado que matou o ex-primeiro-ministro Rafiq Hariri, em 2005, e dos protestos que se sucederam, a Revolução dos Cedros. Voltou a subir até 2010, chegando a um pico de 2,1 milhões de chegadas, e caiu de novo até 2013, retornando ao patamar de 2004. Isso porque o começo da década foi difícil para o Líbano, com a Guerra Civil Síria estourando na fronteira e um enorme fluxo de refugiados – hoje, há 880 mil deles registrados. Apenas a Turquia, muito maior, abrigou mais gente que fugiu da guerra.

(Crédito: iStock)

Desde 2014, o turismo vinha crescendo no país. Mas, apesar de o conflito na Síria ter esfriado, a situação interna estava longe da tranquilidade. Crise econômica, pandemia, governo frágil e corrupto, manifestações nas ruas. Quase metade da população tem medo de não ter o que comer, diz o Programa Alimentar Mundial, da ONU.

Em 2012, um outro exemplo de dilapidação da cidade, bem menos silencioso e impressionante que a explosão de 2020. Mas que não passou batido pela população.

No ano anterior, o esperançoso 2011 da Primavera Árabe, uma construtora adquiriu um terreno próximo ao porto para a construção de três edifícios residenciais de alto padrão. Durante as obras da fundação, ruínas arqueológicas vieram à tona. Especialistas se debruçaram e levantaram a hipótese de que aquilo era um antigo porto fenício. A construção foi suspensa.

No fim daquele ano, o governo mudou de mãos. O novo ministro da cultura encomendou um novo estudo, que concluiu que não se tratava de um porto fenício.

O próximo passo, em qualquer lugar que preze pela própria história, seria seguir com o debate, fazer novos estudos, levantar novas hipóteses, derrubar outras. Em vez de deixar a ciência trabalhar, o governo abriu a porteira para a especulação imobiliária atrapalhar. 

O ministro retirou o sítio arqueológico da lista de locais protegidos e às 6h da manhã do mesmo dia a construtora passou o trator. Protestos tomaram o lugar, organizações internacionais como a Unesco se manifestaram, o caso foi para a justiça.

Mas não teve jeito. As obras seguiram e os prédios ficaram prontos em 2019. Beirute ganhou "um trio de torres localizado no bairro de Marina Solidere que ostenta uma vegetação luxuriante e uma paisagem esplêndida em um contexto luxuoso, com um toque de tradição em estilo moderno".  Aquelas ruínas, que poderiam ou não ser um porto fenício, mas que eram, certamente, resquícios ancestrais de outra civilização, acabaram soterradas por 122 m de alvenaria e concreto. E muitos adjetivos.

Vista aérea de Beirute (Crédito: iStock)

As Venus Towers ficam a menos de 2 km do epicentro da explosão, em um bairro chique de compras cujas janelas se esmigalharam com a onda de choque. Outra região colada ao porto e que também foi bastante atingida é Mar Mikhael, cheia de casas noturnas, bares, cafés e lojas moderninhas. Muitos estabelecimentos ficaram em ruínas nesse bairro que concentra bons restaurantes e importantes templos religiosos da capital. Em suma, é aquela região "obrigatória" para turistas. De uma hora para outra, virou cenário de guerra. 

Só que o Líbano não está em guerra. Nem com ele mesmo nem com seus vizinhos belicosos. Com a explosão de semana passada, o povo, que tinha medo de faltar comida no prato porque os preços subiram 247%, assistiu à destruição dos silos que guardavam 85% dos grãos consumidos no país.

A situação já era grave. Inflação nas alturas, pobreza crescendo, manifestações nas ruas e montanhas transformadas em lixões, literalmente. Fora o baile da pandemia. Agora, nem a renúncia do primeiro-ministro e a dissolução do governo devem frear a queda livre do país e a fúria da população.

As 2.750 toneladas de nitrato de amônio que explodiram no porto estavam ali havia quase sete anos, segundo a Al Jazeera. A embarcação que levava a carga em 2013 teria tido problemas técnicos e estocou o material explosivo em um armazém no porto de Beirute. Desde então, aguardava-se uma solução, como exportar o nitrato de amônio ou vendê-lo a empresas locais.

Jornalistas libaneses têm se perguntado se o desejo por certas compensações financeiras levou os responsáveis a manter por tanto tempo algo tão perigoso no coração da cidade. Basicamente, leiloando uma bomba que explodiu antes de ser arrematada.

O terrorista americano Timothy McVeigh precisou de uma quantidade mil vezes menor de nitrato de amônio para explodir um prédio em Oklahoma, em 1995. O que os responsáveis pelo armazém não tinham da loucura e da maldade de McVeigh, tinham de negligência. Não se trata de um problema pontual, mas de algo da estrutura política do Líbano, segundo o site da revista Foreign Policy.

Quando o conflito acabou, em 1990, muitos dos senhores da guerra sobreviventes escaparam da justiça e trocaram os uniformes por terno e gravata, mantendo o poder. Há gerações as classes governantes sugam o país, diz o artigo.

A explosão daquela terça-feira, 4 de agosto de 2020, foi um "trabalho de bruta incompetência, corrupção endêmica e negligência". É um desastre que lembra muito Chernobyl, que não foi apenas "a história de um acidente nuclear em uma usina soviética. Foi o produto da arrogância endêmica, desleixo, carreirismo e autoritarismo, que criaram um sistema que permitiu o acidente. Era a União Soviética em um microcosmo, produto mortal de décadas de falência política que ajudariam a derrubar uma nação inteira."

A Beirute de hoje nunca esteve tão longe daquela esplendorosa capital do século 19. Marozzi lembrou da capacidade de autodestruição do Líbano: "As tragédias recorrentes de Beirute, incluindo este último desastre totalmente evitável, de alguma forma parecem piores no contexto da beleza natural quase indecente da cidade."

Soa familiar?

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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.