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Dez anos após Primavera Árabe, cenários de 'Star Wars' resistem na Tunísia

Felipe van Deursen

07/02/2021 04h00

(Crédito: iStock)

32º47'N, 10º31'L
Alcácer de Ouled Soltane
Tataouine, Tunísia

Em uma galáxia nada, nada distante, pois é nesta aqui em que vivemos, fica uma província desértica, que no passado esteve na rota de diversos povos, nômades e comerciantes, que a tornavam um local dinâmico e diverso, sob um clima e temperatura brutais. Seu nome é Tataouine.

A influência da geografia e da cultura da Tunísia em Star Wars é nítida e vai além do nome do planeta natal de Anakin e Luke Skywalker, Tatooine. Mas a saga de George Lucas ficou tão grande que ela acabou também gerando um impacto duradouro no país. Os mochileiros galácticos, como o site oficial de Star Wars chama os turistas que visitam as locações da saga, são uma importante fonte de renda para o turismo local.

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Tataouine (que, na pronúncia em francês, é homófona a Tatooine) é tão quente que uma de suas principais características são as casas escavadas, que fornecem frescor e proteção. Essa prática dos berberes, etnia que habita boa parte do Norte da África, é tão bem-sucedida que foi copiada pelos habitantes de Tatooine. As cabanas de barro do planeta são uma cópia da moradia ancestral berbere.

Tatooine é repleto de jawas, pequenos catadores de lixo profissionais que vasculham o território em busca de partes de droides e afins. Nos filmes, o planeta ostenta a economia pulsante das ruas, com um foco especial naquela economia que caminha à margem dos pagadores de impostos limpinhos. É a dinâmica comercial que tem um, dois, nenhum ou vários pés (dependendo da sua espécie) na ilegalidade. É a falcatrua dos contrabandistas, a malandragem dos traficantes.

Essa imagem também tem influência de Tataouine ou, mais genericamente, das caravanas comerciais do Norte da África. As deliciosas cenas de balbúrdia na Cantina Mos Eisley deixam claro que a influência da economia local e seus souks (mercados) e almedinas (centros murados, com ruas estreitas) foi adotada de modo um tanto pejorativo.

(Crédito: iStock)

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A cidade de Tataouine tem o peso do nome, mas não é o destino principal dos mochileiros galácticos. Outros lugares na Tunísia serviram de locação para criar o planeta na telona, como Tozeur, a ilha de Djerba, o salar Chott el Jerid e, especialmente, Matmata.

A histórica Matmata é uma aldeia famosa pelas casas escavadas em encostas ou em grandes poços. Essas habitações trogloditas (povos que habitam cavernas) contam com pátios ao ar livre conectados por diversos corredores. É uma joia da engenharia berbere que deu vida a Tatooine. O êxodo rural nos anos 1960 e 1970 diminuiu a popularidade dessas moradias, mas elas ainda são usadas em Matmata.

A casa onde Luke Skywalker cresceu é uma dessas residências típicas da vila. Tão típica que funcionava como hotel antes da chegada da trupe de George Lucas. Se os primeiros hóspedes eram viajantes interessados na vida berbere, depois o hotel Sidi Driss virou uma hospedaria dedicada aos fãs hardcore de Star Wars.

Ksar, ou alcácer, é uma espécie de vila fortificada típica do Norte da África. Algumas dessas estruturas aparecem bastante em Episódio I: A Ameaça Fantasma para recriar os bairros de escravos onde Anakin Skywalker trabalhou. Ouled Soltane, Hadada e Medenine são alguns dos alcáceres usados nas filmagens.

O alcácer mais impressionante do mundo não fica na Tunísia, mas no Marrocos. Aït Benhaddou é um forte de pelo menos 400 anos erguido com argila em uma rota de caravanas. Desde 1987 é patrimônio da humanidade da Unesco. Alcácer-Quibir, talvez você tenha se perguntado, também fica no Marrocos. Foi onde ocorreu a grande batalha entre cristãos e muçulmanos em 1578 e que resultou na derrota cristã e no desaparecimento do rei português d. Sebastião.

De volta aos tempos atuais, porque d. Sebastião ainda não ressurgiu. Nos últimos anos, o turismo da Tunísia passou por maus bocados. Tatooine pode ser descrito como um fim de mundo esquecido no universo de Star Wars, mas a Tunísia, há dez anos, estava no centro dos acontecimentos deste nosso mundinho aqui.

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O COMEÇO DOS ANOS 2010

O país recebia em torno de 7 milhões de turistas estrangeiros por ano desde 2007. Então, em janeiro de 2011, um mês após Mohamed Bouazizi, um jovem desempregado que trabalhava como vendedor ambulante, atear fogo ao próprio corpo em Sidi Bouzid, protestos por melhores condições de vida levaram à renúncia do primeiro-ministro Zin al-Abidine Ben Ali. O ditador estava no poder desde 1987. A Revolução de Jasmim, como entrou para a história, foi o pontapé inicial da Primavera Árabe, movimento pró-democracia que derrubou ditadores no mundo árabe e encheu o planeta de esperança no começo de uma década que acabou desesperançada.

Em 2011, no reflexo imediato da revolução, o fluxo de turistas caiu quase pela metade, mas já em 2012 ele subiu bem, para 5,9 milhões de visitantes estrangeiros. Enquanto a Líbia naufragava no caos, o Iêmen se fragmentava na guerra civil, o Egito saía de uma ditadura para logo entrar em outra e a Síria dava os primeiros passos na maior e mais sangrenta guerra do século, a Tunísia parecia ser a única vencedora de fato da Primavera Árabe. Ganhou uma democracia, frágil e mambembe, é verdade, mas ainda assim uma democracia.

Tudo parecia estar indo razoavelmente bem até 2015, quando terroristas ligados à Al-Qaeda abriram fogo em um museu da capital, Túnis, e em um resort na cidade costeira de Sousse. Cerca de 60 pessoas, a maioria turistas, morreram. Evidentemente, o evento traumático provocou um baque na indústria do turismo, que teve uma queda de 35% no faturamento. A economia como um todo sentiu, já que o turismo representa 8% do PIB tunisiano. O número de visitantes estrangeiros no país foi de 4,2 milhões, o menor desde 1995.

Os cenários de Star Wars, que sempre figuravam entre as atrações mais populares do país, enfrentaram a desolação. Aqueles construídos para A Ameaça Fantasma, em 1998, para recriar Mos Espa, uma das cidades de Tatooine, foram parcialmente engolidos pelo deserto.

(Crédito: iStock)

Sidi Bouhel é um desfiladeiro também conhecido como "cânion Star Wars". Afinal, é o cenário em que R2-D2 e C-3PO são capturados pelos jawas e Obi-Wan Kenobi resgata Luke Skywalker (cenas do Episódio IV, o clássico Guerra nas Estrelas). Lá, há dois marabutos, túmulos de santos muçulmanos da região do Magreb. Em 2015, somente um guarda permanecia no local, segundo o relato de um fotógrafo do jornal britânico The Guardian.

Matmata, que por um século tinha no turismo a base de sua subsistência, lutou para sobreviver. O hotel Sidi Driss tinha até 300 visitantes todo dia para o almoço. Em 2015, eram menos de 20, todos tunisianos.

DEPOIS DA TEMPESTADE

Então, as feridas se curaram, e o país bateu recordes consecutivos de turistas estrangeiros em 2018 (8,3 milhões) e 2019 (9,4 milhões). Isso é muito mais que os cerca de 6,5 milhões que desembarcam anualmente no Brasil, um país 52 vezes maior que a Tunísia. Cinquenta e duas.

Boa parte desses turistas acaba visitando os cenários de Star Wars. Nem é preciso ser um fã devoto da saga para curtir. São paisagens inspiradoras, às vezes surreais, e culturas ricas e antigas que atraem viajantes desde bem antes de o cinema existir.

Então, em 2020, outro choque. Sim, aquele mesmo que todos conhecemos.

Em 22 de março, o país foi um dos primeiros a instituir quarentena. Estima-se que as perdas no turismo ficaram em torno de US$ 1,4 bilhão e 400 mil empregos no primeiro ano da pandemia de covid-19.

Até o momento, foram mais de 200 mil casos e 7 mil mortes causadas pelo coronavírus. O pico da pandemia foi em janeiro, no aniversário de dez anos da Revolução de Jasmim. Uma nova onda de tensão social e protestos sacudiu as ruas, enquanto o vírus infectava 2 mil pessoas por dia.

Apesar de todos os eventos turbulentos da última década, é difícil imaginar que os cenários cinematográficos do país (alguns dos locais de Star Wars também serviram para Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida e O Paciente Inglês) ficarão totalmente largados. Agências de turismo já aguardam a retomada pós-pandemia para levar os aficionados em excursões de oito dias, cruzando um país (Tunísia) para conhecer um planeta fictício (Tatooine). Já deu para ver que será preciso mais para afundá-los no esquecimento e na areia.

A Fazenda Lars é reconhecida de longe como aquela espécie de iglu no meio do deserto – um ícone de Tatooine. Ela foi construída para a primeira trilogia, nos anos 1970, como o exterior da casa de Luke Skywalker (o interior, como vimos, é o Hotel Sidi Driss, em Matmata). Feita de fibra de vidro e instalada no salar Chott el Jerid, distante de qualquer estrada ou habitação, ela foi abandonada após as filmagens. Uma réplica foi erguida na virada do século, para a segunda trilogia, e depois também foi abandonada.

Então, em 2012, pouco após a revolução e a Primavera Árabe, um dedicado grupo de voluntários restaurou a obra. Se depender dos fãs de Star Wars, revolução, terrorismo e pandemia não serão o suficiente para afastá-los por muito tempo.

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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.