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Terra à vista!

No Egito, templo preservou as cores das paredes graças ao cocô das aves

Felipe van Deursen

07/03/2021 04h00

Crédito: iStock

25º17'N, 32º33'L
Templo de Quenúbis
Esna, Luxor, Egito

Tendemos a pensar em estátuas da Antiguidade, especialmente as gregas, do mesmo jeito: torsos bem delineados, às vezes sem membros, muitas vezes com aquele pênis que vira piada na aula de História, e sempre, sempre tingidas de branco ou cinza. Só que isso é o estado geral das estátuas a que temos acesso hoje, em museus e galerias. Não era assim, séculos atrás. As cores as dominavam. (mais sobre o assunto nesta reportagem de 2018 da revista New Yorker)

Com templos é a mesma coisa. As intempéries do tempo, da natureza e do eventual descaso humano – pois cidades são abandonadas, reis são destronados, religiões são substituídas – não só transformam, aos poucos ou de vez, uma estrutura em um amontoado de ruínas, como também apagam suas cores, deixando para nós apenas o cinza, o bege e a necessária imaginação que acompanha qualquer visita a lugares do tipo.

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Ficam as perguntas no ar, parte do fascínio de ruínas arqueológicas. Como era a vida naquele tempo?

Bem, não precisa ir longe, é só olhar o que o sol apronta com qualquer coisa na sua casa. Comecei uma coleção de latas de cerveja latino-americanas. Em poucos anos, ela parecia ter sido encontrada no fundo do almoxarifado de uma loja de antiguidades.

Para se descobrir a coloração original, os cientistas usam mecanismos com luz ultravioleta ou outras tecnologias. Mas, em alguns lugares, eles nem precisam disso. Basta limpar.

É o que aos poucos estão descobrindo no Templo de Esna, uma cidade da margem oeste do Nilo, cerca de 60 quilômetros ao sul de Luxor. O esplendor de Esna se deu durante o fim do período ptolemaico, encerrado com a morte de Cleópatra e o início do domínio romano, por volta de 30 a.C.. O templo marca essa transição, e foi o último a ter sido decorado com hieróglifos.

(Crédito: iStock)

Dedicado ao deus Quenúbis e à deusa Neite, ele tinha um grande hipostilo (salão sustentado por colunas) – que é basicamente o que restou hoje. Essa estrutura, com 37 m de comprimento, 20 m de largura e 15 m de altura, foi erguida em frente ao templo original por ordem do imperador Cláudio (41-54 d.C.).

O hipostilo é ricamente decorado e manteve muito de sua coloração original. Segundo um time de estudiosos egípcios e alemães que está trabalhando no sítio arqueológico, o que preservou essa beleza foi, basicamente, fuligem e titica.

(Crédito: iStock)

Fora a sorte e o acaso. Até por volta do século 3, ele manteve suas funções originais, de templo, o que demandava uma série de cuidados e normas de como mantê-lo limpo e preservado. Então, nessa época, o cristianismo se espalhou pelo país, e o antigo templo virou apenas um prédio comum.

Por séculos, pessoas e animais o ocuparam de diversas maneiras. Muitas moraram lá, faziam fogueiras, esquentavam comida, chá. Artesãos montaram lojas sob seu teto. Quando as tropas napoleônicas chegaram ao Egito, em 1798, os outros dois templos restantes de Esna foram demolidos para fornecer calcário aos franceses. O templo de Quenúbis só ficou de pé porque é de arenito.

No século 19, havia um depósito de algodão no templo. Em todo esse tempo, pássaros faziam ninho e defecavam nas paredes e colunas.

(Crédito: iStock)

A "bazuca anal", como diziam os saudosos Mamonas Assassinas (ou "cloacal", para ser um pouco mais anatomicamente correto), encontrou na fuligem uma poderosa combinação que protegeu a arte do templo por quase dois milênios. Veja no site da Universidade de Tubinga, na Alemanha, mais fotos do que os cientistas estão descobrindo debaixo da sujeira.

Munidos de cotonetes, papel e uma solução de água destilada com álcool, os restauradores passaram meses removendo os detritos com cuidado para não estragar a pintura original. Antes da pandemia, eram 15 pessoas trabalhando, por quatro meses, em apenas um dos sete tetos do templo, segundo o site Atlas Obscura.

A covid-19, que já matou mais de 10 mil pessoas no país, está atrasando a missão (além dos tetos, faltam 24 colunas). Mas os cientistas já descobriram detalhes fascinantes sob as camadas de titica, como constelações egípcias até então desconhecidas ao lado de outras já registradas, tipo Sah (a equivalente de Órion).

(Crédito: iStock)

As paredes do templo exibem cenas como a dança do faraó diante dos deuses e a captura de peixes e aves com uma rede. As colunas são cobertas principalmente por inscrições, e são as únicas conhecidas que preservam a descrição de um ritual inteiramente, segundo a Enciclopédia de Egiptologia da Universidade da Califórnia.

Quando os trabalhos forem retomados para valer, os cientistas já sabem o que fazer para evitar a sujeira no futuro. Esse templo de 2 mil anos, ainda cheio de segredos sobre a civilização egípcia e o período ptolemaico, vai ganhar uma proteção contra pombos para lá de trivial: telas e lanças nas paredes. Qualquer coisa, chama o síndico.

 

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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.