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Fronteira mais esquisita da Europa tem confusão até em restrições da covid

Felipe van Deursen

09/05/2021 04h00

Baarle-Hertog (Crédito: Reprodução/Instagram)

51º26'N, 4º55'L
Loveren, 2, Baarle-Hertog
Antuérpia, Flandres, Bélgica

Sítio d'Abadia, em Goiás, tem uma área relativamente complexa. O município é constituído de duas porções, que são separadas por uma outra cidade, Formoso, que nem em Goiás fica, mas em Minas Gerais, do outro lado da divisa. Os sitienses vivem, portanto, em um dos únicos municípios brasileiros com um exclave (em que territórios não são fisicamente contíguos). Mas a situação de Sítio d'Abadia é um tiquinho assim mais simples de entender do que a de Baarle-Hertog.

Baarle-Hertog fica na Bélgica, mas só uma parte dela. Outras 22 ficam dentro do território holandês, na cidade-irmã de Baarle-Nassau. Ou seja, são enclaves. Baarle-Nassau, por sua vez, tem um enclave em território belga, uma pequena área rural. Para completar, dentro dos dois maiores enclaves belgas há sete enclaves holandeses.

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Complicado? Sim, inclusive para cidadãos e políticos, que passaram séculos, literalmente, resolvendo o assunto.

Vamos exemplificar. Pegue Paraty, que por alguns anos do século 18 pertenceu à capitania de São Paulo. Imagine que, por algum acordo entre os mandachuvas da época, o Rio de Janeiro tivesse concordado em transferir a cidade aos paulistas, desde que aquilo que chamamos hoje de centro histórico de Paraty permanecesse com os fluminenses. A maior parte do município seria paulista: zona rural, florestas, bairros afastados, distritos etc. Mas o centro histórico da cidade seria do Rio, e, lá no centro, alguns bairros pertenceriam a São Paulo. E, nesses bairros, determinados quarteirões seriam do Rio. Mais tarde São Paulo declararia independência, formando um novo país, mas os acordos seguiriam valendo.

É mais ou menos o que rola em Baarle-Hertog e Baarle-Nassau. Um emaranhado de enclaves e contraenclaves que faz o mapa das cidades parecer um queijo suíço sobre um tabuleiro de xadrez no ateliê de um surrealista que se empolgou no absinto.

A goiana Sítio d'Abadia, em destaque, é dos poucos municípios com exclaves no Brasil (mapa: Raphael Lorenzeto de Abreu/wikicommons)

 

Enclaves da belga Baarle-Hertog no território da holandesa Baarle-Nassau (que por sua vez tem enclaves na área belga). Detalhe: nem todos estão no mapa

PACTO QUASE MILENAR

Esse entrelaçamento de fronteiras começou a ser costurado, ou enosado, em 1198, quando Henrique, o primeiro duque de Brabante, cedeu a maior parte de suas terras ao lorde de Breda. Brabante era um importante ducado medieval, que deu origem a parte dos modernos territórios belga e holandês. Era tão importante que, mais ou menos nessa época, em Brabante já se fazia o estilo de cerveja mais antigo do mundo. Breda, por sua vez, era uma cidade fortificada, que existe até hoje e é um importante município da província holandesa de Brabante do Norte.

Henrique I teve uma vida agitada. Participou de várias temporadas das Cruzadas e teve destaque em algumas delas, chegando a ser regente de Jerusalém. Em seu ducado, certificou-se de, ao ceder terras a Breda, manter algumas propriedades e terras, para não perder a coleta de impostos. Bobo ele não era.

No século 14, Brabante comprou Breda, depois a revendeu a outro lorde, e em 1403, por meio de um casamento, essa cidade acabou incorporada a uma poderosa dinastia holandesa, a Nassau. Detalhe importante: no plano nacional, nessa época, nem Bélgica nem Países Baixos existiam como países soberanos. No século 16, elas estavam sob domínio espanhol.

A Paz de Westfália, o grande acordo internacional que criou as bases da Europa moderna em 1648, reconheceu, entre muitos outros novos traços no mapa do continente, a independência da República Holandesa, livrando-a da Espanha. Mas a parte sul dos chamados Países Baixos Espanhóis continuou sob controle dos Habsburgo de Madri, com a administração centrada em Brabante – do que sobrou dele, porque a porção norte foi para os holandeses.

Assim, Nassau ficou para a nova república, mas os antigos acordos com Brabante seguiram valendo. O tempo passou, os holandeses viraram potência, os Países Baixos Espanhóis passaram às mãos dos austríacos, franceses e holandeses até que, em 1830, se separaram de Amsterdã e formaram a Bélgica.

Já as cidades ficaram do jeito que estavam, do lado holandês a Baarle dos Nassau, do lado belga a Baarle do hertog (termo holandês para "duque"). "De um lado" é bem equivocado para o caso, já que uma está entrelaçada na outra, mas deu para entender.

DUAS CIDADES, DUAS REALIDADES (ÀS VEZES)

Em uma caminhada de 20 minutos é possível cruzar a fronteira 50 vezes, tudo dentro dos limites dessas duas cidadezinhas que, somadas, não têm 10 mil habitantes. Nessa andada, você vê, na prática, o que significa duas cidades amalgamadas. Uma região central com duas prefeituras, duas igrejas matrizes, duas agências de correio, dois corpos de bombeiros…

Os dois países tentaram resolver todas as minúcias da fronteira. A última jurisdição a respeito foi outro dia, em 1995, o que mostra que isso não era lá tão importante nos tempos mais modernos. São cidades pequenas, pacatas, historicamente ligadas. Com a criação da Comunidade Econômica Europeia, antecessora da UE, e o Acordo de Schengen, que aboliu boa parte das fronteiras internas da Europa, os detalhes de divisas com quilometragem irrisórias como essa ficaram de lado. Baarle-Hertog virou uma curiosidade medieval encalacrada no território holandês.

Se em âmbitos nacionais e geopolíticos a bisonha fronteira é irrelevante, na poeira da rua elas fazem diferença. O detalhe mais chamativo dessa característica local são as marcações no chão, que delimitam as fronteiras e atravessam, sem cerimônia, praças, calçadas e até residências e estabelecimentos comerciais. Uma casa virou atração por ser o suprassumo dessa anomalia feudal: a fronteira atravessa a porta da frente, então ela tem dois endereços, em dois municípios, em dois países.

(Crédito: iStock)

No ano passado, quando a Bélgica era um dos países mais afetados pela pandemia de covid-19, diferenças vieram à tona. Enquanto o país entrou, em março de 2020, em rígido lockdown, os Países Baixos mantinham poucas restrições. Donos de lojas e restaurantes em Baarle-Hertog abaixavam as portas enquanto os de Baarle-Nassau, às vezes na mesma rua, permaneciam abertos e aglomerados.


E a loja de roupas que é cortada ao meio pela divisa de um dos enclaves, ficou como? Metade aberta, metade fechada. Se um cidadão precisasse comprar uma cueca não ia dar, porque o setor de roupas íntimas ficava na parte belga da loja, disse um funcionário da loja ao New York Times.

No início da pandemia, a Bélgica obrigava o uso de máscara, com multa prevista de € 250 para quem desrespeitasse a regra. No governo holandês, a postura era quase oposta: muitos políticos criticavam abertamente o uso de proteção facial. Mais tarde, Amsterdã acabou adotando medidas mais drásticas, à medida que a situação ficava mais grave no país. Mas, naquela época, as posturas contrastantes dos dois países afetou a vida das cidades irmãs. O prefeito da parte belga precisava explicar às pessoas que se elas pegassem um ônibus nas partes belgas, deviam usar máscara, mas nos setores holandeses não era necessário.

Em tempos mais tranquilos e saudáveis, algumas diferenças entre as legislações belga e holandesa pregam suas peças nas cidades. Comprar rojões e fogos de artifício nos Países Baixos é mais restrito e complicado, então em dezembro é comum ver filas de holandeses em Baarle-Hertog – que, por isso mesmo, tem tradicionais lojas de fogos, concorridas em dezembro, segundo o Brussels Times, site belga publicado em inglês.

Jovens holandeses só podem beber legalmente com 18 anos, mas na Bélgica a idade mínima é 16, então dá para imaginar aonde o fluxo adolescente vai se embriagar. Bares e restaurantes precisam seguir diferentes regras de horários e serviço, e os moradores pagam impostos para o país onde a porta de entrada da casa fica. Se alguma lei muda e o cidadão passa a pagar mais taxas, é só mudar a localização da porta.

Mas já houve tempos em que essas fronteirinhas tiveram significados dramáticos. Na Primeira Guerra, o Império Alemão invadiu a Bélgica, que resistiu por um tempo mas acabou sofrendo as consequências. Flandres foi rasgada por trincheiras, e a fronteira com os Países Baixos, neutros no conflito, foi cercada e eletrificada, a fim de conter o fluxo de refugiados.

Baarle-Nassau estava fora do alcance dos germânicos, então seus enclaves viraram focos de resistência e ímãs de belgas fugindo da guerra. A situação não se repetiu na Segunda Guerra porque os nazistas invadiram e conquistaram os dois países.

Ainda abalada pela pandemia, Baarle aguarda o dia em que as diferenças entre seus dois lados voltem a ser apenas uma tortura burocrática para serviços públicos e uma delícia folclórica para curiosos como nós. Por ora, as diferenças mais gritantes são relacionadas à pandemia, mas se tudo der certo em breve isso também vai passar.

As áreas abertas de bares e restaurantes nos Países Baixos foram liberadas em 28 de abril. Na Bélgica, foi ontem. As calçadas e os jardins de Baarle respiram, por enquanto.

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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.