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Terra à vista!

O posto de gasolina da Lego existe no mundo real. Na Rússia, claro

Felipe van Deursen

15/03/2019 16h31

52º55'N, 36º08'L
A3C Octan
Oriol, Oblast de Oriol, Rússia

Os blocos de Lego fascinam por tudo de lúdico, criativo, colorido, educativo etc. (apesar de caros, não esqueçamos) que eles conseguem ser. As pecinhas são tão queridas por sua comunidade de fãs que, uma vez imersos, eles são instigados a exercícios filosóficos, quando não têm muito mais o que fazer.

Imagine. Recriar um mundo fictício dentro do seu próprio, aplicando ao modelo original suas linhas, pinos e encaixes. A Lego fez, e com sucesso. Gotham City, Hogwarts e tantas outras geraram o Batman de Lego, o Harry Potter de Lego…

Claro, recriações do tipo não são exclusividade da empresa. Bob Esponja homenageou Aquaman, a Turma da Mônica já interagiu diversas vezes com heróis da Marvel e da DC. Mas não é que sejam contribuições realmente significativas e marcantes para seus respectivos universos. A Turma da Mônica não seria menos importante se não existisse o Caipirão América, o primeiro dos Vingadoidos (não espalha, mas reza a lenda que é o Chico Bento disfarçado).

Com a Lego foi diferente porque desse choque de mundos surgiu outro, relevante. E aí hoje vivemos em um planeta em que tanto o Bruce Wayne com mãos, dedos e feições humanas quanto o Bruce Wayne com as mãozinhas em forma de garra geram filmes, animações, brinquedos e o que mais nossa carteira puder comprar. Na Amazon, dos 20 kits Lego mais vendidos, oito são das linhas Star Wars ou Super Heroes (que inclui as turmas da Marvel e da DC) no momento em que fiz a pesquisa. Conforme as minifiguras (o nome oficial dos bonequinhos) aglutinam esses outros mundos, o multiverso de plástico ABS se expandirá até onde suas economias suportarem.

Com Minecraft a coisa fica ainda mais surreal. Um brinquedo de montar tradicional e querido por milhões abraça um jogo de montar moderno e querido por milhões. O bloquinho digital sueco se teletransportou para o mundo dos bloquinhos físicos dinamarqueses, transmutando-se em uma nova diversão.

Os tentáculos quadriculados dessa expansão atingem até o nosso plano existencial, já que você, aí sentadão, pode ter a sua própria versão Lego. Então, hipoteticamente, é possível recriar não só os mundos fantásticos que brotaram em cabeças como J.K. Rowling e George Lucas como também o seu próprio.

As manifestações mais óbvias disso são as recriações presentes nas Legolands e parques similares. Mas aí estamos falando de miniaturas ou, às vezes, de construções em tamanho real. Mas ainda assim feitas com bloquinhos Lego. É uma emulação.

"Is this the real life? Is this just fantasy?" (foto: wikimedia commons)

PRÓXIMA FASE

Na Rússia há um fenômeno mais sofisticado — ou mais malandro mesmo, dependendo de como você enxergue. Importaram do mundo imaginário dos bloquinhos a empresa petrolífera de Lego, aquela que em Uma Aventura Lego (2014) assumiu o papel de grande corporação do mal. Pois é, a Octan, velha conhecida dos bem-aventurados que explora(va)m a linha Lego City, agora está presente também em algumas rodovias da Rússia.

Não são postos feitos de blocos, como se fossem um teaser de uma hipotética Legoland Rússia. São postos de verdade, porém com a marca surrupiada da multinacional fictícia.

Os sortudos que brincaram com Lego até os anos 1980 talvez se lembrem que havia kits com as marcas da Shell ou da Exxon. A Octan nasceu em 1992 para assumir o papel de petrolífera e, mais tarde, de uma companhia de energia para valer, estampando sua marca até nas turbinas eólicas de Lego City.

A Lego seguiu produzindo kits com marcas do mundo real, mas ter a sua própria empresa foi uma mão na roda para as histórias que ela queria contar. Muito mais fácil fazer um filme em que a Octan é a vilã do que a Shell, convenhamos. A Octan seguiu crescendo, e aparece em 174 kits, de acordo com o site Brickset, uma vasta biblioteca Lego alimentada pelos usuários.

Fãs de Lego no Reddit e no Twitter acharam um, depois mais um e mais outro posto da Octan na Rússia. Um deles fica nos arredores de Oriol, cidade fundada a mando de Ivan, o Terrível em 1566 e devastada pelos poloneses em 1615. Reconstruída 21 anos depois, tornou-se uma fortaleza que defendia o império dos ataques tártaros.

No século 20, Oriol foi ocupada pelos nazistas e libertada na Batalha de Kursk, em 1943. Maior confronto entre tanques da história, ela envolveu 2 milhões de homens e abriu o caminho para a vitória final dos soviéticos.

Mas, no meio disso, Oriol foi completamente destruída.

A história dos postos ainda é nebulosa, não se conhece a origem disso. Mas como russos, brasileiros e outros povos sabem bem, deve ser apenas mais um exemplo da genialidade humana ao explorar a economia informal, o mercado cinza e o uso indevido de propriedade intelectual. Algum designer, com uma mistura de preguiça, criatividade e um tiquinho assim de falcatrua, achou a logomarca na internet e beleza. Próximo job!

E assim o posto de Lego que virou posto de verdade em um lugar que já foi devastado pela guerra é também, mesmo que sem querer, um lembrete. Pôr abaixo e reerguer cidades inteiras só é legal quando é brinquedo.

Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.