Topo

Terra à vista!

Como a ilha mais isolada do mundo ficou ainda mais distante com a pandemia

Felipe van Deursen

30/08/2020 04h00

Tristão da Cunha, vista da Estação Espacial Internacional (foto: Nasa/domínio público)

 

37º04'S, 12º18'O
Edimburgo dos Sete Mares
Tristão da Cunha
Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha (território britânico ultramarino)

 

A Dorsal Mesoatlântica é a fabulosa cordilheira submersa que rasga o Atlântico ao meio de norte a sul. Nos pontos mais inspirados, ela emerge, transborda e a mágica do relativismo do nível do mar acontece: cumes tornam-se ilhas.

Um desses pedaços de terra, de tão remoto, passou milhões de anos sob o domínio supremo das aves. Os humanos chegaram depois que o Homo sapiens já havia desenvolvido agricultura, civilizações, idiomas, veículos de guerra, artes, bebidas destiladas, naus e caravelas.

Uma esquadra portuguesa cujo objetivo era atacar entrepostos árabes na costa leste africana avistou a ilha em 1506. O líder da empreitada não quis homenagear o rei Manuel I, o papa Júlio II ou alguma pessoa especial. Teve uma atitude comum em eventos do tipo e massageou o próprio ego, batizando o lugar com seu nome: Tristão da Cunha.

Tristão não chegou a aportar em sua recém-achada ilha, que apareceria em mapas feitos nos anos seguintes, inclusive no de Mercator. Em vez disso, seguiu viagem.

Tristão da Cunha

O navegante não será mais mencionado neste texto. Vai embora, deixando uma reflexão: esse, sim, foi um episódio em que o termo "descobrimento" se aplica sem brutalidade.

Algumas fontes dizem que outra expedição portuguesa, 14 anos depois, teria sido a primeira a pisar no local. Porém, certeza mesmo, só em 1643: 137 anos depois da esquadra de Tristão, a Companhia Holandesa das Índias Orientais desembarcou em Tristão da Cunha.

Mas ela também não ficou. Andemos mais um século, então. Os franceses por ali passaram em 1767 em uma expedição científica. E foi só. Tristão da Cunha ficava longe demais até para os colonizadores mais sedentos.

UM NOVO E BREVE PAÍS

Os primeiros residentes fixos chegaram tão tarde que os Estados Unidos já eram um país independente – e influente. Houve um homem chamado Jonathan Lambert, de Salem, Massachusetts. Sua história é menos um prenúncio do futuro imperialista e intervencionista da superpotência, e mais uma anedota do empreendedorismo e do self-made man americano.

Jonathan Lambert

Em dezembro de 1810, Lambert, na companhia de dois colegas (e depois um terceiro), partiu para Tristão da Cunha e declarou-a unilateralmente sua propriedade, renomeando o arquipélago para Ilhas do Descanso.

"Declaro a possessão absoluta da ilha Tristan d'Acunha (sic)… e das outras duas, conhecidas pelos nomes de Inacessível e Ilhas Rouxinol, inteiramente para mim e para meus herdeiros para sempre", atestou o jovem marinheiro, alegando que nenhuma potência havia feito isso formalmente.

Ele tinha razão. Portugueses, holandeses e franceses não tinham fincado bandeirinha alguma no local desde a época das Grandes Navegações.

Apesar do nome que o destemido Lambert lhe dera, a ilha oferecia uma vida que era tudo, menos de descanso e relaxamento. Em um ano como o improvável chefe de Estado autodeclarado de um micropaís isolado de todo o resto do mundo, ele e seus três companheiros, além de um cachorro, tocavam uma pequena roça, com gansos, galinhas botadeiras, gado, javalis e plantações de cenoura, beterraba, repolho e outras hortaliças. A vida "não era muito confortável", como Lambert reconheceu em uma carta, segundo o site The Appendix.

Tristan da Cunha-Edimburgo dos sete mares

A ilha de Tristão de Cunha: 2.400 quilômetros longe de tudo

"Nós matamos 60 elefantes-marinhos desde que chegamos", Lambert escreveu. "Deveremos caçar dois por semana ao longo do ano". O elefante-marinho-do-sul, espécie encontrada em todos os mares do sul do planeta, é um animal de até 4 toneladas, amplamente caçado no século 19 por causa de sua gordura. A dieta da trupe não era muito saudável.

Após um ano, em uma dessas caçadas marinhas, Lambert e dois companheiros naufragaram. Somente Tommaso Corri (anglicizado para Thomas Currie) sobreviveu naquela ilha perdida para enfim começar a povoá-la, quando outros humanos chegaram.

A desventura das Ilhas do Descanso acabou oficialmente em 1816, quando o Reino Unido as anexou sob a administração da Colônia do Cabo, possessão britânica que integraria o que viria a ser a África do Sul. Detalhe que a Cidade do Cabo fica a mais de 2.400 km de distância, mas, bem, não tem nada muito mais perto, além de outras ilhas longe de tudo.

Uma dessas ilhas é Santa Helena, 2.160 km ao norte. A distância dos continentes, a latitude e o solo a tornaram uma bem-aventurada no quesito fauna e flora, o que atraía naturalistas europeus.

O primeiro motivo – a distância – foi determinante também para ela se tornar moradia de líderes que bagunçaram a ordem mundial. Em 1890, Dinizulu kaCetshwayo, último monarca do Reino Zulu, foi enviado para o exílio em Santa Helena. Os britânicos fizeram o que sabiam de melhor: dividiram o reino para conquistá-lo. Depois, anexaram o território zulu à futura África do Sul.

Setenta e cinco anos antes de Dinizulu, Santa Helena, à época controlada pela Companhia Britânica das Índias Ocidentais, virou a última moradia de Napoleão Bonaparte. Apesar de a ilha ficar tão distante de Tristão da Cunha, o preso ilustre mudou seu destino.

Até 1811, Tristão era uma ilha para a qual ninguém dava bola (tanto que foi brevemente o país de um americano desafortunado). Então, em 1815, Napoleão foi exilado em Santa Helena. Para evitar que os franceses usassem Tristão de base para tentar libertá-lo para, mais uma vez, quase conquistar a Europa, os ingleses anteciparam o movimento e anexaram a ilha no ano seguinte, em 1816. Houve outros motivos para isso, mas manter Napoleão preso foi um dos principais.

Mesmo assim, a vida não mudou muito em Tristão ao longo do século, apesar do recente interesse geopolítico que ela despertara. Na verdade, a popularização dos navios a vapor, substituindo a vela, e a abertura do Canal de Suez, em 1869, a deixaram ainda mais isolada, já que cada vez menos embarcações a usavam como porto.

Um inverno catastrófico, em 1906, fez os ilhéus cogitarem evacuar Tristão da Cunha e aceitar a ajuda do governo imperial. Resistiram, passaram anos sem ver um navio aportar até que, em 1922, receberam a Expedição Shackleton-Rowett, que voltava da Antártica. O líder da empreitada, sir Ernest Shackleton, morreu quatro meses antes, logo após chegar à Ilha Geórgia do Sul, onde foi enterrado. Frank Wild, que comandou a expedição após a morte do grande explorador, não registrou boas recordações do povo da ilha. "São ignorantes, alheios quase que completamente do mundo, terrivelmente limitados em perspectivas", escreveu.

SEMPRE ISOLADOS

Durante a Segunda Guerra, a Marinha usou a ilha para monitorar os U-boots e outras embarcações nazistas no Atlântico Sul. A estação serviu, depois, para a implementação de toda uma nova infraestrutura para os locais, com escola e hospital. Mas a ilha jamais teve um aeroporto, o que faz dela a ilha habitada mais distante do mundo, aonde se chega após uma viagem de cinco a seis dias de barco.

O príncipe Philip conheceu as instalações ao visitar a ilha em 1957, durante sua turnê mundial no iate HMY Britannia. Antes dele, o único membro da família real a se aventurar ali foi o duque de Edimburgo anterior, príncipe Alfred, segundo filho da rainha Vitória, em 1867. Em homenagem a ele, a capital de Tristão da Cunha foi batizada de Edimburgo dos Sete Mares.

A capital de Tristão da Cunha foi batizada de Edimburgo dos Sete Mares em homenagem ao príncipe Alfred

Se os tristões de 1906 decidiram ficar na ilha, apesar do inverno brutal após anos de dureza climática, seus descendentes não tiveram escolha em 1961. O Pico Queen Mary's entrou em erupção. Sim, além de viverem no meio do oceano, distantes milhares de quilômetros de tudo, eles moram em um vulcão ativo.

Os 264 moradores se refugiaram na Ilha Rouxinol (muitos mapas preferem o nome em inglês dessa ilha desabitada, "Nightingale". Mas, convenhamos, "Rouxinol" é mais bonito). Depois, foram transportados até a Cidade do Cabo, de onde foram para o Reino Unido e receberam larga cobertura da imprensa.

Lá, o povo de Tristão triste ficou ao "deixar o século 19" e tomar conhecimento do que era a Inglaterra moderna.  Dois anos depois, voltaram para casa, muitos com escala no Rio de Janeiro.

Tristão da Cunha é a principal ilha do arquipélago que inclui ainda Rouxinol, Inacessível e Gonçalo Álvares. Gonçalo (ou "Gough", em inglês) e Inacessível são santuários ecológicos com a grife da Unesco de patrimônio natural da humanidade.

Em 2009, uma nova Constituição estabeleceu que Tristão e a ilha de Ascensão, também no Atlântico Sul, deixariam de ser dependências de Santa Helena e passariam a ter o mesmo status de territórios britânicos. Hoje, elas constituem o território de Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha.

Este ano, o povoado voltou a ser notícia. Como a ilha mais isolada do mundo está lidando com a covid-19? Por ora, a pandemia está longe. "Embora não haja distanciamento social na ilha, gostamos de pensar que 2.400 km de Atlântico Sul levem esse conceito ao extremo", diz um bem-humorado boletim do governo local.

"Temos comida, combustível e medicamentos suficientes para os próximos meses. O hospital tem oxigênio adicional, o que vai ajudar. Se o lockdown na África do Sul afetar nossa linha de suprimentos de novo, temos estoque para quatro a seis meses. O racionamento foi suspenso. Temos até rolos de papel higiênico o suficiente! Ainda faltam frutas e vegetais frescos, porque decidimos usar o espaço para produtos não-perecíveis. Esperamos renovar os estoques com o [navio] Geo Searcher de agosto."

Porém, o Geo Searcher não saiu da Cidade do Cabo no dia 20 de agosto, como previsto, por causa das restrições impostas pela pandemia na África do Sul. Membros da tripulação que estavam em outros países não conseguiram chegar a tempo.

Não há previsão de quando o navio carregado de mantimentos chegará. Tristão da Cunha nunca esteve tão isolada nos últimos 500 anos.

 

  • Agradecimentos ao Marcos Candido, grande repórter do UOL, que me sugeriu falar de Tristão da Cunha aqui no blog

Índice de posts do blog Terra à Vista:

Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.