No meio do paraíso, um museu sobre o pecado da escravidão e do racismo
12º06'N, 68º56'O
Museu Kura Hulanda
Willemstad, Curaçao (território autônomo dos Países Baixos)
Você está estirado diante de uma piscina de borda infinita, bebericando coquetéis e pensando na dureza da vida. O mar do Caribe enfeitiça, a brisa lança os problemas para longe. De repente, dá aquele comichão. Que vontade de um museu!
É, eu sei, não é muito fácil abandonar suas amigas iguanas e sair daquela posição lagarteada para bater perna em um museu, ainda mais vestido, passando calor e suando todas as frituras ingeridas na véspera. Mas é justamente isso o que faz de Curaçao uma ilha diferente no Caribe. Não dá só para pegar praia.
Nenhuma visita a essa dependência holandesa está completa sem dar uma volta (no mínimo) no centro histórico de Willemstad, a capital, construído à imagem e semelhança tropical de Amsterdã. Existe uma versão que diz que um antigo governador da ilha ordenou que as casas fossem pintadas de tudo, menos de branco, pois o reflexo da luz solar lhe dava nos nervos. Detalhe que o político era também dono de uma fábrica de tintas. O que faz sentido, pois o conjunto de fachadas parece um catálogo da Suvinil (e de tempos em tempos os prédios são pintados em cores diferentes).
É nesse colorido distrito, no bairro de Otrobanda, que fica o Kura Hulanda, museu dedicado à memória da escravidão nas Américas e a milhares de anos de arte africana. Não é à toa uma instituição do tipo ter sido criada em Curaçao. Quando os holandeses chegaram, no século 17, enxergaram no porto natural de Willemstad a grande oportunidade de competir com as outras potências europeias no mercado atlântico. Assim, Curaçao virou o maior porto do mercado holandês de escravos. Apenas entre 1662 e 1669, a Companhia das Índias Ocidentais, a gigantesca empresa da Holanda responsável pelo tráfico – e que era aquilo que chamaríamos hoje de "corporação do mal por excelência" –, desembarcou 24 mil pessoas escravizadas na ilha.
A escravidão foi o grande negócio curaçauense por dois séculos.
O próprio museu fica em uma área onde traficantes holandeses faziam negócio. Nas seções dedicadas à escravidão, o Kura Hulanda exibe grilhões, correntes, algemas, instrumentos de tortura, maquetes de navios negreiros e até uma reconstrução dos minúsculos e fétidos compartimentos em que eles e elas eram obrigados a se amontoar durante a travessia atlântica. Um vislumbre perverso.
O acervo foca no tráfico holandês e nas colônias caribenhas, é claro, então há bastante destaque para um dos nossos pequenos vizinhos do norte, o Suriname, que era colônia da Holanda. Mas também há uma ala inteira dedicada à escravidão naquele que foi o maior mercado de humanos do planeta: o Brasil. Um vergonhoso lembrete do papel de protagonistas que Portugal e Brasil tiveram nesse capítulo da história da humanidade. Cerca de 10,2 milhões de africanos foram arrastados para o continente entre 1451 e 1870. Desses, 4 milhões vieram para o Brasil. A escravidão e o tráfico atlântico deixaram 16 milhões de mortos.
As outras alas do museu se dedicam às artes de muitos impérios e povos africanos infelizmente pouco conhecidos por aqui. É a maior coleção de arte africana do Caribe. Há cerâmicas, máscaras, armas, esculturas, instrumentos e outros objetos do Império do Gana (hoje partes de Mauritânia e Mali), do Império do Mali (partes de Mauritânia, Mali, Senegal, Gâmbia e Guiné), do Império Songai (partes de Mauritânia, Mali, Senegal, Gâmbia, Níger, Burkina Faso e Nigéria) e do Reino do Benin (parte da Nigéria), entre outros.
Por falar nisso, é do Reino do Benin (não confunda com o atual país, antigamente conhecido como Daomé) a peça que Killmonger (Michael B. Jordan) pega de um museu inglês em uma das grandes cenas de Pantera Negra. A polêmica é real. Nos últimos anos, houve manifestações no Reino Unido para que peças de bronze do Benin em museus e outras instituições fossem repatriadas. A Universidade de Cambridge, após protestos, decidiu devolver uma estátua.
Há também uma seção dedicada ao Antigo Egito, mais especificamente à questão racial dos habitantes do reino dos faraós. O branqueamento dos egípcios pelas artes europeias e, depois, por Hollywood, alimentou controvérsias e debates. O mais provável é que um império tão rico e vasto tivesse habitantes de várias etnias e tons de pele.
O museu avança no tempo e, por meio de recortes de jornal, ilustrações e panfletos, fala do racismo, do abolicionismo e do terrorismo de organizações como a Ku Klux Klan. O distanciamento histórico deixa bem claro que a luta, hoje, é uma continuação da mesma do século 19. Uma luta por igualdade.
Existem algumas formas simples de tentar ser menos racistas. Uma é conversar com as pessoas afetadas diretamente pelo preconceito e ouvir como pequenas atitudes podem ter impactos grandes e perpetuarem o chamado racismo estrutural. Seja nas conversas sobre "cabelo ruim", "medo de Oxum" e "favelados" no BBB, dar uma festinha fantasiada de sinhá e cercada de moças vestidas como escravas ou relativizar a morte por estrangulamento de um jovem negro em um supermercado, para ficar nas polêmicas apenas dos últimos dias.
Outra é ler mais, informar-se mais. Isso pode acontecer, inclusive, nas férias. Quando estiver em uma ilha como Curaçao, caribenha e cara, é sempre bom lembrar o passado vergonhoso e sangrento que construiu tantos lugares que recheiam de lindezas o Instagram e as revistas de viagem.
Mais informações: www.kurahulanda.com
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