Vinho de 8 mil anos sobreviveu ao socialismo. Agora quer seu lugar no mundo
41º23'N, 44º49'L
Gadachrili Gora
Kvemo Kartli, Geórgia
Em 2017, cientistas descobriram as evidências mais antigas de produção de vinho no planeta. Eram fragmentos de cerâmica de 5.900 a.C., encontrados no sítio arqueológico Gadachrili Gora, na ex-república soviética Geórgia. Até então, os registros mais velhos datavam de 5.400 a.C. e foram encontrados ali perto, no Irã.
Com o achado, a Geórgia tornou-se o país com a mais longa tradição vinicultora do mundo. Podemos saber bem pouco deles e dificilmente alguém se lembraria da Geórgia ao falar de lugares famosos pelas vinícolas. Mas já são praticamente 8 mil anos fazendo vinhos que, aos poucos, estão enchendo taças cada vez mais longe do Cáucaso.
Vamos colocar em perspectiva. Quando Roma passou a fazer vinho para valer, por volta de 150 a.C., aquilo que conhecemos como Geórgia correspondia, em parte, à região da Cólquida (onde, de acordo com a mitologia grega, ficava o velocino de ouro, roubado por Jasão). Nessa época, Roma nem império era e os georgianos já faziam a bebida havia 5.750 anos. Só depois, graças à expansão imperialista romana, é que o vinho chegaria à França, Espanha e Portugal.
O método de produção local permaneceu quase inalterado nesses oito milênios. Tudo gira em torno do kvevri, um jarro de cerâmica de tamanhos variados (os maiores têm capacidade para 10 mil litros) e formato que lembra um pião gigante. Mas só vemos seu desenho quando ele está fora de uso, porque normalmente o kvevri fica enterrado. O vinhateiro enche o recipiente com o suco das uvas esmagadas, cascas e caroços inclusos, e lacra. O futuro vinho fica lá fermentando por cerca de seis meses. Em seguida, vem o processo de higienização, em que, aí sim, algumas melhorias modernas ganharam espaço, como água pressurizada.
O kvevri é um traço importante de uma pequena nação que viveu cercada de gigantes. Gregos e persas a dominaram. Os romanos introduziram o cristianismo. Bizantinos e persas disputaram o território. Os árabes chegaram e instituíram um emirado. Em todo esse tempo, o vinho de kvevri estava lá.
Mongóis invadiram a Geórgia e acabaram com três séculos de prosperidade. Depois vieram os turcos, persas (de novo), o Império Russo e a União Soviética. O kvevri resistiu. Mas por pouco os socialistas não acabaram com ele.
Quando a URSS anexou o país em 1921, a ancestral técnica ficou relegada à clandestinidade. Produtores perderam suas terras ou tinham que abrir mão dos vinhedos. As centenas de variedades de uva da Geórgia, propiciadas pelo clima moderado das montanhas, próximas ao Mar Negro, cederam lugar a poucas uvas de produção em larga escala. Na bela e turística região de Kakheti, vizinha de Gadachrili Gora, 500 tipos foram arrancados. Insípidos tanques de aço substituíram o tradicional kvevri.
Não havia espaço para o kvevri nos planos quinquenais de Josef Stalin, ele próprio um georgiano. A ousada industrialização e a desastrosa coletivização da agricultura da superpotência atropelaram os vasos milenares.
Durante os anos socialistas, a Geórgia abasteceu a URSS de vinho industrializado. Os produtores tradicionais só usavam kvevri nas horas vagas e com uvas colhidas em colinas, florestas ou até na rua.
Então a Guerra Fria acabou e a Geórgia reconquistou a independência em 1991. Mas o país precisava ser reerguido. Lutas políticas e rebeliões separatistas, na Abkházia e na Ossétia do Sul, minaram a economia. O vinho seguiu o curso de abastecimento de copos russos, só que quase nada era de kvevri. Em 2006, quando Moscou comprava 95% da bebida georgiana, Vladimir Putin baniu a importação, provavelmente em represália às políticas pró-Ocidente do país.
Em vez de um golpe de misericórdia, o banimento teve efeito contrário. Foi daqueles pés-na-bunda que você olha para trás e sorri, triunfante. Os produtores locais precisaram buscar novos clientes e, de pouquinho em pouquinho, chegaram em países mais longínquos.
Em 2013, parece que o jogo virou. A Unesco reconheceu o tradicional vinho georgiano como patrimônio imaterial da humanidade. A Rússia revogou o banimento e voltou a importar a bebida. Hoje, ela ainda é a maior compradora, mas sua fatia diminuiu consideravelmente (está em torno de 60%). Cinquenta e cinco países importam vinho da Geórgia, Brasil entre eles. O método kvevri, por sua vez, ganhou espaço e responde por respeitáveis 10% da produção.
Ficou curioso em experimentar, mas desanimou porque acha que será difícil encontrar o vinho tradicional? Tudo bem. Os especialistas reforçam que as uvas georgianas são bem diferentes das que conhecemos, então, em geral, o vinho da Geórgia é um tanto característico. Coisa para iniciados, difícil gostar de primeira. Então, se quiser tomar um, não precisar ser necessariamente de kvevri.
Para propagar a bebida e seu rico patrimônio histórico, a Geórgia está investindo na divulgação. Em 2017, a China ganhou um museu dedicado ao vinho georgiano. Em abril deste ano, foi a vez de uma faculdade de agricultura inglesa inaugurar um museu dedicado ao kvevri.
E o kvevri está indo além do vinho. A União Europeia, com a qual a Geórgia mantém relações sociopolíticas e econômicas, quer estimular a produção de uísque feito em kvevri.
Na falta de um motivo alcoólico para ir até o extremo leste da Europa, tome logo dois. É o verdadeiro velocino de ouro.
No mapa, o sítio arqueológico com as mais antigas evidências de produção de vinho do mundo
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