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No México, apavorante Ilha das Bonecas ganha status de ponto turístico

Felipe van Deursen

02/11/2019 04h00

(Crédito: Getty Images)

19º16'N, 99º05 O
Ilha das Bonecas
Xochimilco, Cidade do México, México

Em questão de um punhado de décadas, um canto pitoresco da Cidade do México foi elevado a um status equivalente ao das mais ricas tradições de Dia dos Mortos (que são, por sua vez, uma das faces mais reconhecidas da cultura mexicana no mundo). Pelo menos é o que algumas agências de viagem internacionais levam a crer ao vender pacotes para locais temáticos nessa data festiva.

Uma agência britânica oferece nove dias com o seguinte: "visite a Ilha das Bonecas, participe de rituais gastronômicos em honra aos mortos e faça parte das procissões de Oaxaca". Então tá.

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Nada contra misturar atrações culturais "obrigatórias" com achados alternativos. Isso até pode enriquecer a "experiência" (ou a "narrativa" ou a "jornada", seja qual for a palavra da moda da vez).

Mas é no mínimo curioso ver a Ilha das Bonecas, um tenebroso cenário perdido nos canais de Xochimilco, em pé de igualdade com as festividades de Oaxaca e suas caveiras decorativas, as cempasúchil ("flores dos mortos") alaranjando tudo ao redor e as procissões de Finados. Não à toa, trata-se de uma das festas mais famosas do mundo.

Será que Don Julián Santana imaginou isso?

(Crédito: Getty Images)

A Ilha das Bonecas não é uma ilha, mas uma chinampa, técnica agrícola que consiste em uma espécie de balsa coberta com terra e que servia para ampliar áreas de cultivo em regiões lacustres. Grosso modo, uma horta flutuante. A chinampa era comum nas culturas mesoamericanas e existe até hoje. As de Xochimilco, distrito no sudeste da Cidade do México, são patrimônio cultural da humanidade.

Reza a lenda que, na década de 1950, Julián Santana, proprietário de uma chinampa e figura conhecida e um tanto controversa da vizinhança, encontrou uma menina afogada no canal. Atormentado por sonhos, ele teria passado a coletar bonecas dos depósitos de lixo da região, acreditando que isso ajudaria a alma da garota a ter paz. Outra versão, mais triste, diz que Julián teria encontrado uma boneca perto do corpo, que, provavelmente, pertenceria à morta.

Já outra história, preferida por você, você ou todos vocês que são mais céticos, diz que jamais houve tal menina. O sujeito simplesmente a criou em sua solidão e passou a colecionar restos de bonecas por falta do que fazer. Ou por maluquice.

(Crédito: Getty Images)

Fato é que, ao longo dos anos, Julián foi montando um respeitável acervo de cabeças, braços, pernas e troncos feitos de resinas plásticas, cabelos sintéticos e pesadelos. Dizem que até os vizinhos e curiosos que por ali passavam contribuíam para a coleção.

Julián morreu em 2001, afogado no mesmo lugar onde, supostamente, a menininha havia falecido. Desde então, a Ilha das Bonecas virou pauta em revistas de curiosidades e programas de TV e tem atraído cada vez mais turistas excêntricos.

(Crédito: Getty Images)

Até que a ilha virou atração nos roteiros temáticos de terror nessa época de Dia dos Mortos e Halloween. Um grande feito, se considerarmos que ela, dependendo de como você enxerga, nada mais é do que um amontoado de lixo infantil decrépito em um canal a mais de 20 km do centro histórico da capital.

A façanha da Ilha das Bonecas é ainda maior quando lembramos que se trata de um país que é provavelmente o mais legal do mundo nessa época do ano, cheio festividades e rituais repletos de tradição, cor e relevância cultural, social e religiosa.

Isso me fez lembrar da própria origem da cidade. Uma suntuosa capital imperial entrecortada por jardins, palácios e canais, devastada pela ganância, a doença, a espada e a pólvora para dar lugar a uma megalópole que, de tanta água retirada do solo para alimentar sua imensidão, acabou afundando 9 metros no século passado.

Tenochtitlán é um zumbi remexendo a terra debaixo de sua filha colossal, a Cidade do México. A Ilha das Bonecas é um pedaço de unha (do Zé do Caixão) nessa história impressionante. E apavorante.

Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.