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Terra à vista!

Por que o Bairro da Luz Vermelha de Amsterdã pode acabar

Felipe van Deursen

14/12/2019 04h00

Bairro da Luz Vermelha, em Amsterdã

52º22'N, 4º53'L
De Wallen
Amsterdã, Holanda do Norte, Países Baixos

Em julho de 2018, Femke Haselma, uma cineasta de 56 anos e ex-líder do partido verde GroenLinks na Câmara dos Deputados da Holanda, tomou posse como a primeira prefeita da história de Amsterdã. Logo de cara, uma de suas medidas foi aumentar a presença de seguranças no folcloricamente lascivo Bairro da Luz Vermelha. Ela também anunciou o banimento de grupos organizados de turistas, o que deve ser implementado no primeiro semestre de 2020.

A postura da primeira mulher à frente da capital holandesa era clara. O distrito precisa se adaptar às mudanças do século 21 e à realidade que vive o turismo local.

Conhecido como De Wallen ("as muralhas", em holandês), por ficar dentro dos antigos muros da cidade, o bairro tem longa tradição na história do sexo. Amsterdã começou a crescer como cidade portuária no século 13 e, como todo porto, lá estava a prostituição o acompanhando.

Em 1478, a prática era tão disseminada que o governo criou uma zona de confinamento. Os calvinistas tentaram regulamentá-la, sem sucesso, e no século 17 a prostituição passou a ser tolerada abertamente. Em 1850, havia um bordel para cada mil habitantes.

O bairro se esparrama ao redor da Oude Kerk ("igreja velha"), templo que remonta às origens da cidade – o prédio atual é do século 14. A própria localização geográfica da principal zona de meretrício da capital, bem no centro histórico, mostra a importância que a prostituição adquiriu, querendo ou não, na sua imagem.

A EXPLOSÃO DO TURISMO BALADA

Na década de 1960, à medida que as autoridades ficaram mais tolerantes com prostitutas abrindo as cortinas para atrair clientes, os bordéis de vitrines, com suas luzinhas vermelhas características, se popularizaram. Com o passar dos anos, eles se tornaram sinônimo do bairro. E um dos símbolos de Amsterdã, cidade que escancarava aquilo que todo o resto do mundo fazia às escondidas.

Em 2000, outra grande mudança. Os bordéis foram legalizados e a prostituição tornou-se uma atividade regulamentada e taxada.

Em 2007, um ousado projeto de gentrificação começou a transformar prostíbulos e coffeeshops em restaurantes e lojas finas. Mais de 120 vitrines do sexo apagaram as luzes.

Isso aumentou a concentração de turistas nas vielas em que as lâmpadas vermelhas (e as azuis, para indicar profissionais transsexuais) ainda resistiam. Só que esse processo de gourmetização veio também acompanhado de outro, o barateamento de passagens aéreas. Resultado: cada vez mais gente se acotovelando em um espaço de interesse cada vez mais reduzido.

Em 2004 surgiu o slogan "I amsterdam" e seu protossélfico letreiro. Naquele ano, 4 milhões de turistas chegaram à cidade. Em 2018, foram 19 milhões. Sinal de alerta ligado. Em dezembro, a prefeitura ordenou a remoção do "I amsterdam" da Museumplein, a praça dos museus, porque a muvuca que todos os dias se formava para uma foto se tornou um problema.

O turismo excessivo de massa é uma sina que algumas cidades europeias têm enfrentado. Amsterdã ainda tem o agravante de ser, para milhões de jovens, um turismo massivo da gandaia, da esbórnia, do fuzuê e da balbúrdia. É um destino buscado para festas de formatura, despedidas de solteiro, semanas do saco cheio e farras afins. Uma Porto Seguro medieval.

Aonde essas hordas vão passear? No Museu Marítimo Nacional é que não.

Mais de mil excursões passam pelo Bairro da Luz Vermelha a cada semana. Em horários de pico, a concentração chega a 28 grupos por hora espremidos nas ruas estreitas. Avisos para não urinar na rua nem beber em espaços públicos se espalham pelas vielas. Lojas colam adesivos na entrada pedindo que as pessoas não falem alto e não vomitem em público. Isso aí, precisam solicitar para o cidadão de bem não vomitar na calçada.

A proibição das excursões no distrito é uma medida para desestimular o safári humano em que o bairro se transformou. "É fora de moda tratar profissionais do sexo como atração turística", declarou o então vice-prefeito de Amsterdã à revista New Yorker.

Mas se as vitrines surgiram para exibir e atrair clientes e o interesse só cresce, qual o problema? O que as pessoas buscam.

Segundo profissionais da área, antigamente você ia lá para usar. Drogas, sexo ou ambos. Hoje, as pessoas vão apenas para ver, farrear e, o pior, fotografar e, muitas vezes, fazer chacota dos seres humanos atrás das janelas. As vitrines deixaram de ser um comércio para ser apenas um cenário pitoresco.

É inegável seu apelo para isso. Mas tentar entender as sensibilidades locais e o contexto histórico é o mínimo que se pode fazer para não ser um turista boçal.

Essa é a realidade do bairro. A prefeita Haselma propõe uma mudança significativa para diminuir a criminalidade, a bagunça e a poluição sonora e aumentar a segurança das profissionais. Em entrevista à revista Time, ela disse: "Eu não tenho que gostar do trabalho do sexo. Isso é irrelevante. Porque existe um mercado".

A prefeitura fez quatro propostas para a situação do bairro e do tráfico sexual que o alimenta (80% das mulheres são imigrantes). Fechar as cortinas para desestimular os turistas, reduzir o número de vitrines, aumentar o número de vitrines e, assim, aliviar o trânsito nas calçadas, ou encerrar de uma vez a prostituição no local, realocando as profissionais para outra área, possivelmente um hotel com vigilância.

Mas as principais envolvidas não gostaram das mudanças propostas. Em reação a isso, surgiu o movimento Red Light United, que alega que 93% das prostitutas são contra a mudança dos bordéis e que qualquer medida contra o turismo atinge as profissionais do sexo.

Em vez de lançar uma frente única contra as excursões, o movimento defende que a prefeitura trabalhe junto com as mulheres das vitrines, com um sistema de tolerância zero às fotografias na área e introduzindo selos de qualidade que limitem e selecionem os grupos de turistas.

Afinal, nem toda excursão é uma gangue de adolescentes com uma mão dentro da calça e outra no pau (de selfie). Desde 1994, por exemplo, o Prostitution Information Center (PIC) organiza tours capitaneados por mulheres que já trabalharam nas vitrines. Existe um trabalho de conscientização que anda junto com o turismo.

A PROSTITUIÇÃO NA HOLANDA

Não existe solução fácil (mas tenho certeza que vão aparecer várias na caixa de comentários).

O modelo holandês legaliza e visibiliza a prostituição. As profissionais se registram na câmara de comércio e pagam impostos. Em Amsterdã, a idade mínima para trabalhar nas vitrines é 21 anos.

Existe também o modelo sueco, que tem feito mais sucesso e foi implementado no Canadá, França, Irlanda e Israel. Nele, a compra, e não a venda, de sexo é criminalizada. Obter lucro por meio da prostituição de outras pessoas também é crime.

Críticos do modelo sueco dizem que ele só serve para minimizar a visibilidade da prostituição, mas não aumenta a segurança das profissionais. As mulheres evitam trabalhar em grupo, para não serem taxadas por formação de bordel, e acabam em lugares longe da polícia e, consequentemente, mais perigosos, onde são vítimas de violência física.

No Brasil, a prostituição é reconhecida desde 2002, mas não foi regulamentada. Desde 2003 existe um projeto de lei para resolver isso e diferenciar a prática da exploração sexual. Casas de prostituição e rufianismo (cafetinagem) são proibidos.

Utrecht, a quarta maior cidade da Holanda, é um exemplo do tamanho do enrosco. Em 2013, ela fechou sua histórica zona da luz vermelha e cerca de 100 vitrines em seus canais. Até hoje, a promessa de encontrar uma nova área para a prostituição ainda não saiu do papel, devido à dificuldade de encontrar financiamento e à resistência de políticos locais.

O FUTURO DE AMSTERDÃ

"Nós não temos que ficar famosos por causa de sexo e drogas. Queremos ser conhecidos por nossa herança cultural". Podia ser a prefeita de Nossa Senhora da Catuaba d'Oeste a dizer isso, mas foi a de Amsterdã. Terra onde Spinoza nasceu, Rembrandt viveu, Mondrian estudou.

Só que vai ser difícil separar uma coisa da outra. O grosso das excursões de formandos que todo ano invadem Porto Seguro pode estar muito mais interessado em ter uma camiseta do Tôa a Tôa, dar petê no Axé Moi e curtir ressaca na Passarela do Álcool. Normal.

Mas Porto Seguro, famosa pela farra, é também uma das cidades mais antigas do Brasil, com prédios históricos de quase 500 anos. Porto Seguro é a Cidade Alta e é também a Passarela do Álcool.

O Bairro da Luz Vermelha é um grande trunfo que faz de Amsterdã uma capital única. Mas a capital holandesa é também o Rijksmuseum e o NDSM, a Casa de Anne Frank e o Jordaan. Quando tive a oportunidade de pedalar e caminhar entre seus canais, era tanta informação nova por quilômetro quadrado que eu até esquecia que estava 2 m abaixo do nível do mar.

Até o brasão de armas de Amsterdã sugere uma interpretação dúbia de cidade do pecado. Seu escudo vermelho tem uma faixa vertical preta com três cruzes de Santo André. É aquela cruz diagonal, a mesma da bandeira da Escócia. Santo André foi martirizado em uma cruz diagonal. Por ter sido um pescador no século 1 d.C., ele foi a inspiração, 1500 anos depois, para essa então cidade pesqueira.

A bandeira da cidade deriva do escudo. Nela, a faixa vertical está na horizontal. Então, fica ainda mais fácil confundir a cruz com um xis. Em vez de três cruzes, a gente pode ver três xis. Ou "xxx", o símbolo da pornografia.

Que bandeira. Que cidade.


Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.