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Terra à vista!

A árvore que sobreviveu ao Saara, mas não a um caminhoneiro bêbado

Felipe van Deursen

05/07/2020 04h00

17º45'N, 10º04'L
Monumento à Árvore do Ténéré
Tchirozerine, Agadèz, Níger

Uma árvore não costuma ser referência geográfica, a não ser em mapas mitológicos ou em mapas de videogame. Mas houve uma que, de tão especial, aparecia, nominalmente, até em cartas de escala 1:4.000.000, ou seja, em que cada centímetro equivale a 40 km.

A Árvore do Ténéré já foi considerada a mais solitárias das árvores. Uma acácia (Acacia tortilis, para ser mais exato) que sobrevivia, distante 400 km de qualquer semelhante, no Ténéré, região desértica do Saara que engloba partes do Níger e do Chade.

O Ténéré é classificado como uma zona hiper-árida, com temperaturas que muitas vezes passam dos 50ºC e com índices pluviométricos lamentáveis além da conta, entre 1 e 1,5 cm de chuva por ano em alguns pontos. Anos podem se passar sem cair uma gota do céu.

"Ténéré" é a palavra tuaregue para deserto. Tal qual "sahara", em árabe.

Árvore do Ténéré, em 1961 (foto: Michel Mazeau – wikicommons)

Dados o cenário e as condições extremas, dá para começar a ter uma ideia do que significa uma árvore dessas no meio do deserto. Eis o que diz o cientista e escritor italiano Stefano Mancuso, especialista em neurobiologia vegetal (ramo de estudo do qual ele é um dos fundadores), no livro The Incredible Journey of Plants ("a incrível jornada das plantas", sem edição brasileira):

"É tão difícil encontrar água no subsolo que os poucos poços na região ficam a centenas de quilômetros um dos outros. É o lugar com mais luz solar no mundo, mais de 4 mil horas ao ano. Nenhuma planta pode sobreviver em tais condições. Mas a Acácia de Ténéré pôde."

Árido e sem acesso ao mar, o Níger é um dos países mais miseráveis do planeta. A cultura, por sua vez, é vasta e antiga.

Habitada há tempos por povos nômades, que sobreviviam na base do comércio em um território dominado pelo Saara e pelo Sahel, a zona semidesértica, a região assistiu à chegada do islamismo no século 6. Mas ele só se expandiu 1.300 anos depois, pouco antes da chegada dos franceses, o que ocorreu em 1897.

A França instituiu uma federação que, ao longo de sua existência, até 1958, englobaria oito territórios no continente: os atuais Níger, Mali, Mauritânia, Senegal, Guiné, Costa do Marfim, Burkina Fasso e Benin. Eles compunham a África Ocidental Francesa (AOF).

Burocracias colonialistas à parte, naquela época, havia tempos, a acácia já cumpria a função de guia de caravanas no Ténéré. Uma espécie de farol do deserto, que guiava os tuaregues, esse povo berbere que habita o deserto e que, no passado, dominava as rotas comerciais do Saara.

Em 1907, 2,5 mil méharistes, tropas montadas em dromedários que atuavam na AOF, cruzaram o deserto pela Rota Azalai, trajeto que caravanas tuaregues faziam todo semestre para transportar sal das minas de Taudeni, no Mali. A partir de então, a Árvore do Ténéré passou a aparecer constantemente em relatos europeus. Em alguns deles, diziam que ela parecia estar sufocada pela areia, já que o movimento das dunas às vezes quase a cobria inteira.

Em 1930, os militares europeus assimilaram de vez o ensinamento tuaregue e incluíram a árvore em mapas, como ponto de referência. Nove anos depois, Michel Lesourd, um comandante francês, relatou:

"É preciso ver a árvore para acreditar em sua existência. Qual é o seu segredo? Como ainda pode viver, apesar das multidões de camelos que pisam do seu lado? Como que, a cada Azalai, um camelo perdido não come suas folhas e espinhos? Por que os numerosos tuaregues que lideram as caravanas de sal não cortam seus galhos para fazer fogueiras para preparar seu chá? A única resposta é que a árvore é tabu e é considerada como tal pelos caravanistas."

O relato segue. Retirei o trecho do livro de Mancuso:

"Existe um tipo de superstição, uma ordem tribal que é sempre respeitada. A cada ano, os azalai se reúnem em volta da árvore antes de enfrentar a travessia do Ténéré. A acácia se tornou um farol vivo; é o primeiro ou o último marco para os azalai que partem de Agadèz [cidade histórica, patrimônio da Unesco e a maior do norte do Níger] para Bilma [oásis no nordeste do país] ou voltam."

"Os pássaros descansam ao pé da árvore. Atraídos de longe por sua presença, eles vêm para o abrigo, pensando que encontrarão água e folhagem verde."

"Infelizmente, é a morte que está esperando. Não é uma miragem, mas, do mesmo modo, não é uma fonte onde as rolas, os corvos e os pardais prementes podem beber."

A Grande Mesquita de Agadèz tem mais de 500 anos. (Crédito: Getty Images)

 

Centro Histórico de Agadèz: patrimônio da Unesco. (Crédito: Getty Images)

Naquele mesmo ano de 1939, quando cavaram um poço, os franceses descobriram que as raízes da acácia alcançavam um lençol freático a mais de 30 m de profundidade. Era o segredo de sua sobrevivência.

Em 1973, a árvore teve um fim tragicômico (oquei, só 10% cômico, 90% trágico).
Um caminhoneiro bêbado líbio conseguiu bater no único obstáculo em um raio de quilômetros.

Morta e derrubada, a Árvore do Ténéré foi transferida pelo Exército do país para o Museu Nacional Boubou Hama, na capital, Niamei. Em 1979, um memorial foi inaugurado para o que sobrou da acácia. O mausoléu é uma das atrações do museu, que fica em um parque e tem sete pavilhões dedicados à cultura e às tradições orais do Níger, além de representações de habitats e um zoológico. O nome da instituição é uma homenagem a Boubou Hama, historiador e político nigerense e um escritor premiado no mundo francófono.

Museu Nacional, em Niamei. À esquerda, o mausoléu da Árvore do Ténéré. (Crédito: Getty Images)

No lugar da Árvore do Ténéré, uma escultura de metal foi erguida. Ela aparece bastante na comédia La Gran Final, que mostra a paixão pelo futebol em algumas comunidades isoladas no planeta e o esforço que elas fazem para assistir a Brasil x Alemanha na Copa – a de 2002, ainda bem.

No lugar da Árvore do Ténéré, um monumento de metal (foto: Holger Reineccius – wikicommons)

Deran, álbum de 2018 do nigerense Bombino, um dos grandes músicos do mundo hoje, marcou um retorno do guitarrista às suas raízes. O disco é todo cantado em tamashek, uma das variantes do idioma tuaregue.

Em uma das músicas, a importância da acácia e da flora de maneira geral para os povos do deserto é explícita. Chama-se "Tehigren". Ou "as árvores".

Já dizia o sábio meme do Cretáceo da internet (cerca de dois mil e nove milhões de anos atrás). "As árveres somos nozes".

 

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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.