Igreja no abismo: cristianismo resiste em templo milenar quase inacessível
13º54'N, 39º20'L
Abuna Yemata Guh
Hawzen, Tigré, Etiópia
O Reino de Axum surgiu no primeiro século da nossa era no território que corresponde hoje ao norte da Etiópia e à Eritreia, beijando o Mar Vermelho. Cerca de 400 anos mais tarde, um grupo de missionários, vindos da Síria, Constantinopla, Anatólia e até de Roma, foi fundamental para que o cristianismo fincasse os pés naquela região.
Um desses missionários, que passaram à eternidade como os Nove Santos, era Abuna Yemata (ou Abba Yem'ata). A igrejinha dedicada a ele em Tigré, berço da civilização etíope, não é uma igreja comum. Ela consegue a proeza de ter seus mil quatrocentos e tantos anos de existência e isso não ser sua característica mais marcante. Abuna Yemata Guh é, possivelmente, a igreja mais inacessível do planeta.
A Etiópia tem diversas igrejas escavadas em rocha. As 11 de Lalibela, patrimônio da humanidade, foram esculpidas há mais de 700 anos e atraem peregrinos até hoje. São as mais famosas do país.
Já Abuna Yemata Guh não é tão impressionante em termos arquitetônicos. O que a torna tão especial é justamente a dificuldade de se chegar lá.
Fiéis, aventureiros e fiéis/aventureiros devem cruzar uma ponte de pedra a 250 m de altura, depois uma ponte de madeira estreita, seguida de uma caminhada extenuante até chegar a uma rocha vertical. Após escalar a pedra, é preciso atravessar uma saliência de 50 cm de largura sobre um precipício de 300 m. Tudo isso a uma altitude de 2.580 m, sem uso de equipamento. E descalço, como a tradição local cristã manda.
A vista compensa, mas não é só ela. A baixa umidade do ar preservou os afrescos do interior do templo. Representando os Nove Santos, além dos apóstolos, as pinturas são um exemplo de arte cristã primitiva.
A igreja se sustenta em pilares de arenito resultantes do processo de erosão que aconteceu nos tempos de Gondwana, explica Frances M. Williams no livro Understanding Ethiopia: Geology and Scenery.
Esse megacontinente surgiu há uns 540 milhões de anos, juntando América do Sul, África e grande elenco. Depois, há 420 milhões de anos, com os movimentos do megazord continental, uma grande cadeia de montanhas começou a se esfarelar com a ação do vento, da água e do gelo. Rios daquilo que hoje chamamos de Etiópia, que ficava bem no meio dessa antiga cordilheira, levaram os sedimentos para o futuro Sudão e também para a Arábia e a Índia, que depois se separariam de Gondwana, formando o mapa que conhecemos hoje.
CRISTIANISMO NAS ALTURAS
As montanhas etíopes mostraram-se ideais para divulgadores e praticantes dessa nova religião poderem se proteger de inimigos e perseguidores. Deu certo, e o cristianismo vingou na Etiópia.
Enquanto muitos vizinhos se convertiam ao islamismo, o país desenvolveu seu próprio ramo cristão, a Igreja Ortodoxa Etíope. Com cerca de 50 milhões de fiéis, ela faz parte do grupo das igrejas ortodoxas orientais, assim como os coptas e os armênios, entre outros. Ainda no século 5, por terem visões distintas sobre a natureza de Cristo, essas igrejas se separaram dos católicos e ortodoxos europeus.
Nos últimos anos, ONGs vêm denunciando a perseguição a cristãos em algumas áreas do país. No entanto, hoje, o grande foco de tensão da Etiópia é entre os seus dois maiores grupos étnicos, os oromos e os amarás. Desde que o músico e ativista Haacaaluu Hundeessaa, jovem e proeminente ídolo oromo, foi assassinado, no fim de junho, a Etiópia tem vivido ondas de violência brutais.
A origem da rixa não está na religião, mas nas visões conflitantes de país: de um lado os pan-etíopes, de outro os nacionalistas étnicos. Porém, como muitas vezes em contextos do tipo, qualquer diferença é desculpa para treta. Houve casos de ataques entre cristãos e muçulmanos até mesmo dentro da comunidade oromo, segundo a revista etíope Addis Standard.
Diferentemente dos amarás, que em sua maioria são cristãos ortodoxos etíopes, os oromos são um caldeirão de sunitas, ortodoxos e seguidores de religiões tradicionais africanas. O próprio primeiro-ministro etíope, o oromo Abiy Ahmed, é protestante, filho de pai muçulmano e mãe ortodoxa.
O carismático Ahmed chamou a atenção do mundo ao soltar presos políticos e montar um gabinete dividido meio a meio entre homens e mulheres. No ano passado, ganhou o Nobel da Paz ao assinar um acordo com a Eritreia, país que conquistou a independência da Etiópia em 1993, gerando uma nova e conflituosa fronteira no Chifre da África.
Mesquitas e igrejas têm servido de abrigo para as vítimas da onda de violência atual. Uma realidade bem distante da vivida em Abuna Yemata. Em 2018, a BBC exibiu a história do padre Haylesilassie Kahsay. Sua rotina era a seguinte: acordar de madrugada, trabalhar até as 6h, comer, caminhar por duas horas e, aí então, iniciar o processo de subida para a igreja, daquele mesmo jeito que descrevi há alguns parágrafos.
Lá no alto da montanha, dedicação à oração e ao estudo de livros antigos. Todos os dias.
Talvez a fé não mova montanhas, só as placas tectônicas, as mesmas que fizeram e desfizeram Gondwana. Mas que montanhas inspiram a fé, isso 15 séculos de história etíope estão aí para mostrar.
Mais como chegar a Abuna Yemata no site Africa.com
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