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Terra à vista!

Cavernas da Andaluzia preservam danças, costumes e uma cultura de 500 anos

Felipe van Deursen

27/09/2020 04h00

(Crédito: Getty Images)

37º10'N, 3º35'O
Sacromonte
Granada, Andaluzia, Espanha

Assim como as variedades de oliva cultivadas (mais de 200) e as séries na Netflix (pelo menos 20), a Espanha também oferece um cardápio de cavernas do tamanho dos dois volumes de Dom Quixote. Altamira e outras 17 cavernas no norte do país preservam o melhor da arte paleolítica. A Associação de Cavernas Turísticas Espanholas lista 33 tocas, fossos e grutas em diversas regiões, no continente e nos arquipélagos, de Madri a Ibiza. Desde 2019, as cavernas de Paterna, em Valência, atraem curiosos em geral e fãs de Pedro Almodóvar. Elas serviam de moradia para famílias humildes nos anos 1960 e ficaram mais conhecidas ao aparecer em Dor e Glória, filme do diretor (e um dos melhores do ano passado).

Em Granada, outros tipos de cavernas continuam cumprindo a função de casa para muita gente. Não há 50 anos, mas há 500.

Acredita-se que a tradição remonta ao período da Reconquista. Em 1492, o emir Muhammad XII cedeu o controle do Emirado de Granada aos chamados Reis Católicos, como eram conhecidos Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela. A transição de um Estado muçulmano para um cristão, porém, não foi pacífica.

Entre os termos do acordo estava a tolerância à fé dos cidadãos muçulmanos. Mas, em dado momento, a Igreja não estava satisfeita com a situação e iniciou um processo de batismo forçado de não-cristãos, o que motivou uma revolta na cidade, na virada do século 16.

Boa parte da elite islâmica, além da judaica, refugiou-se no norte da África. Os que ficaram, mesmo que convertidos, enfrentaram preconceito e perseguição. Alguns, expulsos de suas casas, criaram abrigo nas cavernas. A eles se juntaram os roma, povo nômade que conhecemos como "ciganos".

(Crédito: Getty Images)

Longe do controle de bispos e governantes, essas pessoas puderam seguir a vida com mais liberdade. Não se tratava de meros esconderijos em cavernas naturais. Elas criaram suas próprias casas. Primeiro, limpavam o terreno, removendo mato. Com a rocha nua, faziam um corte na face da colina, estabelecendo a fachada da casa. Depois, cavavam e moldavam os novos lares.

Diz uma lenda que muitos desses nobres expulsos nutriam a esperança de voltar à cidade onde nasceram, à terra de seus avós e pais. No caminho para o exílio na África, antes de chegarem aos portos de Almuñécar ou Almería, eles precisavam esconder as posses que ainda podiam carregar, a fim de não serem roubados por gangues de soldados cristãos renegados.

Muitos desses tesouros estariam sob as oliveiras de um monte chamado Valparaíso.

(Crédito: Getty Images)

Como os nobres não tinham como carregar seus baús em segurança, também não tinham mais condições financeiras de realizar a travessia com um séquito de pessoas escravizadas. Então, muitos desses escravos ganharam a liberdade.

Conhecendo os rumores do paradeiro das riquezas, eles saíram em busca do morro. Cavaram, cavaram e cavaram, mas nada de ouro. Exaustos e sem ter para onde ir, decidiram se estabelecer nas cavernas, transformando-as em casas. Por isso, hoje o local se chama Barranco dos Negros.

A partir de então, as cavernas tornaram-se um modo de vida e um polo cultural granadino. Foi nas cavernas de Sacromonte, por exemplo, que surgiu a zambra, estilo de flamenco típico de casamentos ciganos e que chegou a ser proibido durante o reinado de Filipe II, no século 16.

(Crédito: Getty Images)

As cavernas passaram por graus de ocupação diferentes ao longo do tempo. Em 1963, durante a ditadura franquista, chuvas pesadas provocaram deslizamentos de terra, então muitos habitantes tiveram que abandonar suas casas. Mas, depois, elas foram reocupadas.

Hoje em dia, Sacromonte e outras colinas abrigam cerca de 2 mil famílias. Algumas recebem turistas, que se hospedam ou assistem a demonstrações de dança e coisas do tipo, enquanto outras são quase como qualquer casa de classe média do século 21, com internet, TV, cozinha e banheiro equipados etc.

Sacromonte é claramente dividida em duas comunidades, segundo a Vice espanhola. Uma é o lar de famílias que ali estão há muito tempo, enquanto na outra vivem "espíritos livres e viajantes". Em ambas, a vista é uma das melhores de Granada.

A prefeitura anunciou em 2017 que a área das cavernas passaria por um replanejamento urbano, mas pouco foi feito e menos ainda foi informado aos locais. Enquanto o Museu Cuevas del Sacromonte recria, no alto de uma colina, a vida como ela era no tempo das primeiras gerações, os habitantes seguem lá. Século após século, adaptando-se aos novos tempos.

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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.