Cavernas da Andaluzia preservam danças, costumes e uma cultura de 500 anos
37º10'N, 3º35'O
Sacromonte
Granada, Andaluzia, Espanha
Assim como as variedades de oliva cultivadas (mais de 200) e as séries na Netflix (pelo menos 20), a Espanha também oferece um cardápio de cavernas do tamanho dos dois volumes de Dom Quixote. Altamira e outras 17 cavernas no norte do país preservam o melhor da arte paleolítica. A Associação de Cavernas Turísticas Espanholas lista 33 tocas, fossos e grutas em diversas regiões, no continente e nos arquipélagos, de Madri a Ibiza. Desde 2019, as cavernas de Paterna, em Valência, atraem curiosos em geral e fãs de Pedro Almodóvar. Elas serviam de moradia para famílias humildes nos anos 1960 e ficaram mais conhecidas ao aparecer em Dor e Glória, filme do diretor (e um dos melhores do ano passado).
Em Granada, outros tipos de cavernas continuam cumprindo a função de casa para muita gente. Não há 50 anos, mas há 500.
Acredita-se que a tradição remonta ao período da Reconquista. Em 1492, o emir Muhammad XII cedeu o controle do Emirado de Granada aos chamados Reis Católicos, como eram conhecidos Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela. A transição de um Estado muçulmano para um cristão, porém, não foi pacífica.
Entre os termos do acordo estava a tolerância à fé dos cidadãos muçulmanos. Mas, em dado momento, a Igreja não estava satisfeita com a situação e iniciou um processo de batismo forçado de não-cristãos, o que motivou uma revolta na cidade, na virada do século 16.
Boa parte da elite islâmica, além da judaica, refugiou-se no norte da África. Os que ficaram, mesmo que convertidos, enfrentaram preconceito e perseguição. Alguns, expulsos de suas casas, criaram abrigo nas cavernas. A eles se juntaram os roma, povo nômade que conhecemos como "ciganos".
Longe do controle de bispos e governantes, essas pessoas puderam seguir a vida com mais liberdade. Não se tratava de meros esconderijos em cavernas naturais. Elas criaram suas próprias casas. Primeiro, limpavam o terreno, removendo mato. Com a rocha nua, faziam um corte na face da colina, estabelecendo a fachada da casa. Depois, cavavam e moldavam os novos lares.
Diz uma lenda que muitos desses nobres expulsos nutriam a esperança de voltar à cidade onde nasceram, à terra de seus avós e pais. No caminho para o exílio na África, antes de chegarem aos portos de Almuñécar ou Almería, eles precisavam esconder as posses que ainda podiam carregar, a fim de não serem roubados por gangues de soldados cristãos renegados.
Muitos desses tesouros estariam sob as oliveiras de um monte chamado Valparaíso.
Como os nobres não tinham como carregar seus baús em segurança, também não tinham mais condições financeiras de realizar a travessia com um séquito de pessoas escravizadas. Então, muitos desses escravos ganharam a liberdade.
Conhecendo os rumores do paradeiro das riquezas, eles saíram em busca do morro. Cavaram, cavaram e cavaram, mas nada de ouro. Exaustos e sem ter para onde ir, decidiram se estabelecer nas cavernas, transformando-as em casas. Por isso, hoje o local se chama Barranco dos Negros.
A partir de então, as cavernas tornaram-se um modo de vida e um polo cultural granadino. Foi nas cavernas de Sacromonte, por exemplo, que surgiu a zambra, estilo de flamenco típico de casamentos ciganos e que chegou a ser proibido durante o reinado de Filipe II, no século 16.
As cavernas passaram por graus de ocupação diferentes ao longo do tempo. Em 1963, durante a ditadura franquista, chuvas pesadas provocaram deslizamentos de terra, então muitos habitantes tiveram que abandonar suas casas. Mas, depois, elas foram reocupadas.
Hoje em dia, Sacromonte e outras colinas abrigam cerca de 2 mil famílias. Algumas recebem turistas, que se hospedam ou assistem a demonstrações de dança e coisas do tipo, enquanto outras são quase como qualquer casa de classe média do século 21, com internet, TV, cozinha e banheiro equipados etc.
Sacromonte é claramente dividida em duas comunidades, segundo a Vice espanhola. Uma é o lar de famílias que ali estão há muito tempo, enquanto na outra vivem "espíritos livres e viajantes". Em ambas, a vista é uma das melhores de Granada.
A prefeitura anunciou em 2017 que a área das cavernas passaria por um replanejamento urbano, mas pouco foi feito e menos ainda foi informado aos locais. Enquanto o Museu Cuevas del Sacromonte recria, no alto de uma colina, a vida como ela era no tempo das primeiras gerações, os habitantes seguem lá. Século após século, adaptando-se aos novos tempos.
Índice de posts do blog Terra à Vista:
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.