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Terra à vista!

Árvore mais solitária do mundo pode, finalmente, ganhar companhia

Felipe van Deursen

25/10/2020 04h00

34º09'S, 172º08'L
Manawatāwhi/Ilha do Rei
Ilhas dos Reis Magos, Nova Zelândia

Ela ocupa, sozinha, uma pontinha rochosa, marcada pela erosão, em uma ilha desabitada, a maior de um arquipélago igualmente desabitado. É a última de sua espécie.

Dez anos atrás, poderíamos até chamá-la de árvore "forever alone" e fazer analogias dendrológicas com letras de músicas emo. Mas o auge do emo passou, os memes mudaram e essa árvore, chamada kaikomako, não é "forever alone". Não era no passado. E, se tudo der certo, não será no futuro.

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Ilha Grande, ou Ilha do Rei, tem 4 km2, área um pouco maior que o menor município do Brasil, a mineira Santa Cruz de Minas. O nome antecipa que ela é o maior pedaço de terra desse grupo de ilhas. Mas esse é o nome dado pelos europeus. Desde muito antes ela era conhecida pelos maori como Manawatāwhi.

(Crédito: iStock)

Em 1642, o explorador holandês Abel Janszoon Tasman comandou a esquadra que tinha como missão mapear a região a leste do Cabo da Boa Esperança. Em dezembro daquele ano, ele se tornou o primeiro europeu de que se tem notícia a desembarcar no que hoje chamamos de Nova Zelândia. Três semanas depois, o navegante ancorou em Manawatāwhi em busca de água. O dia era 6 de janeiro de 1643 e, por isso, o arquipélago foi batizado de Drie Koningen, como os Três Reis Magos são chamados na língua de Rembrandt – fato relevante sem nenhuma ligação: meses antes, o pintor tinha concluído a obra-prima A Ronda Noturna.

Tasman ainda seria o primeiro europeu a pisar em Fiji e na ilha que leva seu nome, a Tasmânia. A partir de sua chegada às Ilhas Three Kings (como são conhecidas hoje, já que a Nova Zelândia acabou virando colônia britânica), a situação dos maori se deteriorou, até que em 1840 eles deixaram de vez o arquipélago.

Em 1889, alguém achou uma boa ideia soltar quatro bodes e cabras na ilha, a fim de alimentar eventuais vítimas de naufrágio. Os animais se multiplicaram descontroladamente até 1946, quando foram erradicados. Sem predadores, eles comeram e procriaram por gerações, desequilibrando toda a cadeia local. Sobrou para as plantas. Muitas desapareceram.

No ano anterior, em 1945, G.T.S. Baylis, um renomado cientista neozelandês, descobriu a kaikomako. Décadas de debate acadêmico se seguiriam a respeito da taxonomia, até que os entendidos concluíram que a Pennantia baylisiana, como ela foi denominada cientificamente, é uma espécie realmente única, com apenas um indivíduo. Não só na ilha, mas no mundo todo.

(Crédito: iStock)

Uma árvore do gênero Pennantia, parente da kaikomako (foto: wikicommons)

A kaikomako só sobreviveu porque ela fica em uma ponta da ilha, cercada por rochas íngremes, 700 m acima do mar. Se estivesse mais acessível, teria virado almoço de bode.

Alguns cientistas questionaram seu valor, se não era apenas o caso de uma espécie que cresceu longe de suas semelhantes e que seria, portanto, uma árvore mais comum. Mas assim que confirmaram a história, a kaikomako virou uma peça de valor incalculável para o legado biológico do país, segundo a National Geographic. É que, para complicar ainda mais, ela é uma espécie dioica, ou seja, que tem estruturas reprodutivas de apenas um sexo e que precisa de outro indivíduo semelhante para procriar – assim como você, uma anta ou um peixe-espada.

Ilhas dos Reis Magos (foto: Peter Southwood/wikicommons)

CONDENADA, ELA?

O que aconteceria se Robinson Crusoé, Gulliver, Jack Sparrow ou o Tom Hanks estivessem isolados em uma ilha deserta, náufragos, e toda a humanidade desaparecesse? Como não dá para procriar com uma bola de vôlei, nossa espécie estaria fadada à extinção. Adeus, Wilson.

Essa era a realidade da árvore. Em 1969, um estudo sobre o estado de conservação das ilhas neozelandezas concluiu que a Pennantia baylisiana estava condenada. Até que o cientista Ross Beever e Geoff Davidson, dono de um viveiro de plantas, resolveram tentar mudar o quadro.

A kaikomako da Ilha do Rei é fêmea, mas algumas de suas flores produzem pólen, o elemento de reprodução masculino. Os pesquisadores especularam que esses pequenos vestígios machos pudessem ser estimulados e, talvez, uma surpreendente autopolinização poderia virar realidade.

O problema era que não havia material em abundância para testar, já que se tratava de uma única planta isolada em uma ilha. Então eles recolhiam algumas mudas e levavam para fazer testes. Anos fracassados se passaram até que Beever tentou uma nova abordagem. Ele experimentou um herbicida que simula hormônios naturais de crescimento e que dissolve o exterior rígido dos grãos de pólen, facilitando a fertilização. Os hormônios amplificaram sinais enviados por frutos, e isso estimulou a kaikomako a produzir novos frutos: roxos e maduros, com sementes viáveis para reprodução.

Nas décadas de 1980 e 1990, a dupla cultivou as primeiras seis mudas. Davidson passou a vender a planta, doando os rendimentos a organizações de conservação. A cada cliente, ele fazia um pedido: que entrasse em contato assim que a nova árvore florescesse.

Mas o caminho ainda era longo e árduo. Em 2005, um time de pesquisadores limpou, desinfetou e conservou em refrigeradores específicos, seguindo os protocolos exigentes de um programa governamental de prevenção de desastres, 4 mil sementes, que desembarcaram na ilha. Sete anos depois, havia meros 65 casos razoavelmente bem-sucedidos. Ainda assim, uma vitória.

Os ngati kuri, povo maori local, receberam 500 sementes. A participação deles no processo tem sido essencial, não só pela logística, mas por questões políticas e de reparação histórica. Sem o apoio deles, os cientistas não teriam a mesma estrutura para trabalhar e conseguir, um dia, reestabelecer as formas de vida que foram removidas nos últimos séculos.

Manawatāwhi tem grande importância na mitologia maori. Quando alguém morre, não importa em que lugar de Aotearoa (Nova Zelândia) esteja, seu espírito viaja para o norte, atravessa o Cabo Reinga e sobe até o ponto mais alto de Manawatāwhi, de onde se despede da terra natal e retorna a Hawaiki, o mundo de seus ancestrais, explica Clare Gogerty no livro Sacred Places: Where to Find Wonder in the World.

Agora, há esperanças reais para a sobrevivência da espécie. A kaikomako pode ter novos companheiros, trazendo mais vida a esse lugar tão importante para os maoris. Serão novos ares para uma ilha cujo nome, no idioma local, quer dizer "último respiro".

 

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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.