Biquinha de Anchieta viu cenas de guerra, fé, arte e vandalismo em 500 anos
23º58'S, 46º23'O
Biquinha de Anchieta
Praça 22 de Janeiro, São Vicente, São Paulo
Após mais de dois anos, cento e tantos textos e quase 100 países, territórios e nações esdrúxulas não reconhecidas, o Terra à Vista, atendendo a pedidos, começa a trazer a partir de hoje histórias de lugares brasileiros pouco ou nada lembrados por guias de turismo. Outros pontos do mundo continuarão tendo espaço no blog, mas agora com a companhia do Brasil.
Para estrear, é justo partirmos da cidade mais antiga do país.
Tem alguma sugestão legal? Mande para mim (os endereços das redes sociais estão ali em cima).
No começo do mês, plena Sexta-Feira Santa, arrancaram as mãos do José de Anchieta. A bengala lhe seria inútil, então surrupiaram-na também. A notícia entristeceu São Vicente, reportou o site Costa Norte. Mais uma vez, o local que celebra São José de Anchieta, o jesuíta espanhol que viveu e trabalhou na primeira vila portuguesa da América, foi vandalizado.
A última vez tinha sido há pouco tempo. No ano passado, a estátua foi entregue ao público, restaurada, após outro episódio de depredação, disse o Jornal Vicentino. Quinze meses depois, lá se vão as mãos, com a bengala, como mostra essa foto do Instagram @pedrofraille
O monumento fica próximo à fonte que também sofreu depredações ao longo do tempo. Conhecida como Biquinha, é um marco do município da Baixada Santista. Afinal, não se conquista um nome informal e no diminutivo à toa, ainda mais com direito ao uso de maiúscula. A história da Biquinha é a história da cidade mais antiga do Brasil.
BICA CENTENÁRIA
Há 500 anos já havia registros de uma fonte d'água no local. Quem nos conta é o historiador Fernando Lichti, pesquisador da memória de São Vicente e das cidades vizinhas, no livro Polianteia Vicentina. Segundo Lichti, que morreu em 2018, o morro de Tumiaru (atual morro dos Barbosas), na borda da praia Mahuá (a atual praia de São Vicente, que todo mundo chama de Gonzaguinha), tinha duas nascentes. Uma delas era a Fonte do Povoado, quase na ponta leste do morro, próxima à praia.
Naqueles idos, entre 1515 e 1520, o que existia ali era um povoado com lavouras, comércio e tráfico de escravos liderado por Cosme Fernandes, nobre português degredado (condenado ao exílio) que administrava essa faixa do litoral. Fernandes – ou o Bacharel de Cananeia, "personagem exemplar do Brasil primevo, meio mítico", como descreveu Roberto Pompeu de Toledo no ótimo A Capital da Solidão (Objetiva) – vivia de abastecer, reparar e construir embarcações que desciam ou subiam a costa. Líder influente entre indígenas e portugueses, ele fez negócios também com espanhóis.
Isso tudo antes de 1531, quando Martim Afonso de Souza desembarcou e iniciou a colonização, digamos assim, mais oficial. Ou seja, ouvimos que os portugueses se estabeleceram para valer a partir de então, mas antes disso eles já estavam agindo aqui e li.
No ano seguinte, 1532, Martim Afonso fundou a vila de São Vicente e a fez sede da capitania de mesmo nome. Aliás, a ilha onde hoje ficam São Vicente e Santos, antes chamada pelos tupiniquins de Gohayó, ganhou o nome do santo já na primeira expedição exploratória da costa, no início do século.
Ilha, vila e capitania homenageando o mesmo homem, um mártir espanhol do século 4 que, mesmo sem ter nenhuma relação conhecida com o vinho, acabou virando padroeiro dos vinicultores no Brasil e em outros países. Mas a falta de criatividade acabou fazendo sentido, uma vez que aquele tido como o primeiro produtor de vinho do Brasil, Brás Cubas, fundador de Santos, trouxe a bebida na expedição de Martim Afonso de Sousa – abaixo imaginada, em 1900, por Benedito Calixto (a tela está no Museu Paulista).
São Vicente tinha arsenal, estaleiro, fortaleza e casas em estilo europeu antes mesmo de ser fundada como vila, graças às peripécias do Bacharel. Mas, por algum motivo, ele se desentendeu com seus conterrâneos e em 1534 aliou-se aos espanhóis estabelecidos mais ao sul, em Iguape.
Os espanhóis, que se recusaram a jurar lealdade ao rei de Portugal, invadiram São Vicente ao lado de carijós e com o significativo apoio do cacique Piquerobi, líder dos guaianás, e de Fernandes. Assim, o Bacharel acabou sendo o pivô da primeira batalha "entre cristãos nesta parte das Índias Ocidentais", segundo um relato do século 17. Os portugueses eventualmente expulsaram os espanhóis para o sul, mas São Vicente foi arrasada.
Apesar da fundação da vila e da Guerra de Iguape, a Fonte do Povoado não sofreu alterações significativas. Suas águas despejavam no riozinho ao lado, a cem metros da praia, um ambiente agradável que, segundo Lichti, atrairia aqueles que, aí sim, mudariam para valer a dinâmica da localidade: os jesuítas.
O padre Leonardo Nunes fundou, em 1553, o Colégio dos Meninos de Jesus de São Vicente a poucos passos da fonte. Ele morreu no ano seguinte em um naufrágio, e em 1555 o jovem José de Anchieta, trazido da Bahia por Nunes, passou a frequentar mais o largo da fonte.
"Anchieta dá preferência, em suas práticas e meditações, ao ambiente paradisíaco criado em torno dela pela natureza. Logo mais, daria aulas de catecismo e primeiras letras portuguesas, naquele lugar, junto à Biquinha, para que seus meninos, os catecúmenos e órfãos brancos, sentissem melhor os seus ensinamentos", escreveu Lichti.
A Biquinha serviu também para as práticas artísticas de Anchieta. Além de ter participado da missa que marcaria a fundação de São Paulo, ele tinha tempo de ser poeta, dramaturgo e gramático. O primeiro literato nascido nas Canárias e um dos primeiros nomes da literatura brasileira. "Com tempo firme, montava ali também as suas peças teatrais, os seus conhecidos e famosos autos assistidos pelo povo e pelas autoridades locais, hoje considerados como origem e nascimento do Teatro no Brasil", segue Lichti.
O jesuíta teria ajudado a construir o primeiro monumento rústico para a bica d'água. O local serviu para eternizá-lo nas letras brasileiras e também como origem do mito em torno dele, que aos pouquinhos se espraiou pelo litoral. Fora do Brasil foi aos pouquinhos mesmo, na morosidade típica que o Vaticano reservava aos países periféricos. A canonização veio só em 2014, já sob o papado de Francisco.
Os séculos correram. Em 1850, pelo que indicava a inscrição, a fonte, já merecidamente conhecida como Biquinha de Anchieta, ganhou um rústico paredão. Mais para frente, veio um mosaico português e linhas neocoloniais.
Em 1933, o terreno onde ficava o antigo colégio pertencia a José Antônio Zuffo, que mandou fazer uma placa de bronze homenageando o jesuíta. Dez anos depois, na comemoração de 411 anos de São Vicente, um mural em alto-relevo de terracota substituiu o mosaico português. O painel, assinado pelo artista Domingos Savorelli, autor de outras obras públicas na cidade, mostrava Anchieta em sua mais conhecida função, a de catequizar indígenas.
Só que não é de hoje que esse paternalismo colonialista é visto com asco por alguns setores da sociedade. No mesmo ano, o mural foi vandalizado. Mas não sabemos o motivo, se alguma bandeira politizada ou se o puro prazer de quem não sabe o que fazer com essa tal liberdade e por aí sai depredando a coisa pública.
A Biquinha ganhou, então, ainda em 1943, um novo mosaico ilustrando a obra de Anchieta. É o que segue lá até hoje. O entorno mudou um bocado, e o bucolismo virou saudade.
Biquinha de Anchieta, sem data (biblioteca do IBGE)
Quer mais fotos? O site Novo Milênio tem uma bela seleção e explica a evolução do monumento.
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