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Terra à vista!

Marcadas por descaso e guerra, ruínas olímpicas de Sarajevo querem renascer

Felipe van Deursen

08/08/2021 04h00

(Crédito: Instagram/@rolandblanc)

43º50'N, 18º26'L
Pista abandonada de bobsled
Monte Trebević, Sarajevo, Bósnia-Herzegóvina

Passada a festa, vem a ressaca. Com o encerramento dos Jogos Olímpicos, hora de lembrar o lado podre dessa máquina bilionária que constrói sonhos, forja heróis e "desperta o melhor de nós", esparramados no sofá de madrugada. Afinal, as Olimpíadas são, também, uma usina de elefantes brancos. Uma fábrica de edifícios e estruturas que têm a peculiar marca registrada de brilhar para o mundo por duas semanas e depois, em poucos anos, parecer um cenário apocalíptico que está ali há eras.

Os espaços largados da Rio 2016, ainda bem longe da promessa de legado de virarem escolas e outras instalações úteis à sociedade, são só mais alguns exemplos em uma longa lista de ruínas olímpicas. Toda Olimpíada tem show de abertura, mascote, pictogramas, maratona no último dia. Tem também doping, corrupção e arenas, pistas, quadras e piscinas abandonadas. É uma antitradição.

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Berlim 1936, Montreal 1976, Moscou 1980, Atenas 2004, Pequim 2008 são alguns dos Jogos que deixaram ruínas impressionantes. O problema se repete nas Olimpíadas de Inverno. A vila dos atletas de Turim 2006 até teve um legado nobre, mas não por iniciativa de qualquer autoridade. Dez anos depois, em 2016, totalmente abandonada, ela foi ocupada por refugiados e imigrantes, no auge da crise migratória do Mediterrâneo.

SARAJEVO NÃO É BRINCADEIRA

De todas essas cidades olímpicas, a que ganhou as ruínas mais improváveis, a ponto de virarem destinos turísticos populares, é Sarajevo. Sede das Olimpíadas de Inverno de 1984, a capital da Bósnia-Herzegóvina, que à época integrava a Iugoslávia, recebeu 1.272 atletas de 49 nações. Foi a segunda Olimpíada consecutiva realizada no lado de lá da Cortina de Ferro, após os Jogos de Verão de Moscou, quatro anos antes. Mas, dessa vez, não houve boicote dos Estados Unidos e sua turma (inclusive, americanos, alemães ocidentais, canadenses e italianos ganharam uns ouros).

O que fez o parque olímpico tristemente especial veio depois. Em 1992, em meio ao colapso da Iugoslávia, a minoria sérvia não aceitou a independência bósnia e o país, habitado por muçulmanos (bosniaks), católicos (bósnio-croatas) e ortodoxos (bósnio-sérvios), mergulhou em uma horrenda guerra que marcou a década.

As belas montanhas de Sarajevo, verdes no verão e brancas no inverno, viveram novas realidades. As pistas das Olimpíadas se transformaram em centro de tiro de snipers sérvios nos anos 1990. A mais emblemática delas é a de bobsled, no Monte Trebević, que já foi considerada a mais íngreme e veloz do mundo.

(Crédito: iStock)

A arena Zetra, construída para os Jogos e sede das competições de hóquei no gelo e patinação artística, além da cerimônia de encerramento, foi bombardeada e incendiada. Seu interior virou enfermaria e necrotério. A madeira dos assentos, em uma mórbida versão da sustentabilidade propagandeada em Olimpíadas futuras, foi reutilizada para fazer caixões. A área externa virou cemitério – um dos tantos que se vê hoje na cidade, resultado do Cerco de Sarajevo, o mais longo cerco a uma capital nos tempos modernos: foram quase quatro anos, com 14 mil mortes.

Terminado o conflito, a criação de um novo e ultraburocrático país, formado por duas entidades políticas independentes, com um alto representante da comunidade internacional e uma presidência tripartite rotativa, abandonou de vez a lembrança dos Jogos. Especialmente porque ela é um símbolo poderoso da glória dos tempos iugoslavos e socialistas, algo que em muitos setores da sociedade dos países do bloco é visto como um trauma.

(Crédito: iStock)

Destruída e abandonada, a pista atraiu grafiteiros e, mais tarde, ciclistas que a aproveitaram para praticar downhill. Desde a década passada há planos de revitalização da área, ainda cercada de minas terrestres. Mas nada foi feito. Hoje, ela é a quarta atração turística mais popular da cidade no Trip Advisor.

Engana-se o preguiçoso que pensou "é porque não tem nada para fazer lá". Sarajevo pulsa história, esteve no centro de acontecimentos que mudaram o mundo há 100 anos (se você escutou Franz Ferdinand em algum momento da vida, vai se identificar. Entendedores entenderão).

Espremida entre impérios que viraram história na guerra que começou por causa do atentado em suas ruas, Sarajevo reflete as influências austro-húngaras e otomanas. É um pequeno e bucólico cruzamento de Istambul com Viena nas montanhas, temperado com decadência socialista e buracos de bala nas paredes. Boa comida, povo simpático e próxima das badalações do litoral dálmata, é uma cidade acessível e segura.

(Crédito: iStock)

Apesar do esquecimento, os Jogos não foram varridos para debaixo do tapete da memória pública. Mais de 30 anos depois, ainda havia placas anunciando o evento. Os anéis olímpicos estão em prédios, a logomarca permanece na calçada do bazar otomano. Não fossem os sinais de desgaste e ferrugem nesses símbolos, pareceria uma viagem no tempo, formando um cenário que poderia ser aproveitado em Dark.

A pista de bobsled, coberta de vegetação e grafites, é a principal atração olímpica da cidade, mas há outras, como o pódio de esqui, a pista de salto de esqui, uma escultura dos anéis na montanha, o esqueleto de um hotel.

Em 2014, 31 anos após os Jogos, a rodoviária de Sarajevo ainda mencionava a Olimpíada (foto: Felipe van Deursen)

VIDA NOVA?

Nem tudo é abandono e descaso, no entanto. A arena Zetra foi reconstruída e recebeu eventos culturais e esportivos (além de campanhas de vacinação). As pistas de esqui foram revitalizadas. Desde 2014, atletas de bobsled têm trabalhado no monte Trebević e usado sua pista para treinar. Em 2018, até times de outros países, como a vizinha Eslovênia e até a Turquia, aproveitaram as instalações para se preparar para as Olimpíadas de Pyeongchang.

(Crédito: Instagram/@pedroroquinho)

Espírito olímpico renovado pelas belíssimas imagens e histórias exibidas pelo Serviço Olímpico de Transmissão (OBS), aguardemos agora Pequim 2022 e Paris 2024. E, com elas, provavelmente, os relatos de legado olímpico às traças em Tóquio.

É do jogo. Ou melhor, dos Jogos.

Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.