Turquia: por que Santa Sofia voltou a ser mesquita e o que isso significa
41º00'N, 28º58'L
Grande Mesquita de Aya Sofia
Sultanahmet, Istambul, Turquia
Na sexta, 24 de julho, as preces voltarão a acontecer regularmente sob o embasbacante domo de Santa Sofia, após um hiato de 85 anos. O governo turco anunciou, semana passada, que o grande edifício, transformado em museu em 1935, voltará a ser uma mesquita.
A notícia repercutiu bastante no Ocidente. A Unesco convocou a Turquia para discutir o assunto com urgência e declarou que pode rever o status de patrimônio da humanidade concedido à Santa Sofia. A Igreja Ortodoxa, previsivelmente, condenou a medida imposta à sua antiga basílica. O Conselho Mundial de Igrejas, organização ecumênica que representa diversas denominações cristãs (mas não os católicos apostólicos romanos), escreveu que a medida vai "inevitavelmente provocar incertezas e desconfianças" quanto ao futuro e pediu que Ancara revisse a decisão. Até o papa Francisco, que, em termos religiosos, não tem muito a ver com o assunto, se mostrou "aflito".
A rival Grécia declarou que se trata de uma "provocação aberta ao mundo civilizado". Cirilo, o patriarca ortodoxo russo, achou que seria melhor deixar as coisas como estavam. Se a rixa com a ortodoxa Grécia, que já foi possessão do antigo Império Turco-Otomano, é nítida, aquela com a Rússia, maior país ortodoxo do mundo, é mais complexa.
Até ser tomada pelos otomanos, em 1453, a antiga Constantinopla era o coração do mundo cristão ortodoxo. A partir de então, reconquistar a cidade para o cristianismo era um desejo dos russos, que se viam como herdeiros do Império Bizantino e – por que não? – também estavam de olho nas conexões marítimas oferecidas pela geografia única de Istambul. Caso o Império Russo tivesse vencido a Guerra da Crimeia (1853-56), talvez nós não a chamaríamos nem de Constantinopla nem de Istambul (muito menos de Bizâncio), mas de Czargrado.
Se no passado Turquia e Rússia já foram inimigos declarados, hoje não é assim, como lembra Igor Gielow na Folha de S. Paulo. Turcos e russos apoiam lados opostos nas guerras civis da Líbia e da Síria, mas um gasoduto liga os dois países e os turcos compraram sistemas antiaéreos de Moscou. É do jogo.
No lodaçal de opiniões do Twitter, teve quem aplaudiu, teve quem condenou a novidade, segundo apurou a Al Jazeera. O empresário paquistanês Mir Mohammad Alikhan, primeiro muçulmano dono de um banco de investimentos em Wall Street, congratulou o mundo islâmico. Joseph Lumbard, autor de livros sobre o Corão e professor universitário no Catar, lembrou que quem se preocupa com a antiga basílica deveria olhar os 3 milhões de uigures que tiveram suas propriedades e mesquitas destruídas na China nos últimos anos.
(Não que eu ache que uma coisa anule a outra, mas é só pra gente ver o rumo que o assunto pode tomar. No Brasil, teve quem se referiu a Santa Sofia meramente como "basílica", ignorando mais de 500 anos de história).
UMA HISTÓRIA QUE SE REPETE
Acontece que um templo de uma religião xis ser convertido em um de uma fé ypsilon não é algo raro. Pelo contrário.
Catedral Metropolitana da Cidade do México? Erguida sobre um templo asteca. Mesquita-Catedral de Córdoba? Catedral que era mesquita, que era igreja e que foi, possivelmente, templo pagão.
Quando os otomanos conquistaram os Bálcãs, muitas igrejas foram convertidas em mesquitas. No século 19, no processo de independência dos países balcânicos, essas mesquitas voltaram a ser igrejas. Os gregos, hoje preocupados com o futuro de Santa Sofia, destruíram muitos prédios e mesquitas muçulmanos. Nos anos 1990, 80% das mesquitas bósnias foram destruídas ou danificadas por sérvios ortodoxos ou croatas católicos durante a guerra que sepultou a Iugoslávia.
A história medieval da Índia é uma profusão de templos hindus transformados em mesquitas. Mas, em tempos mais recentes, mesquitas também foram destruídas por hindus. Em 1992, uma turba pôs abaixo, na base de marteladas, a mesquita histórica de Babri, em Ayodhya, em um episódio que repercute politicamente até hoje no país. Em 2019, a Suprema Corte ordenou a construção de um templo no local, que, de acordo com a tradição hindu, foi onde a divindade Rama nasceu.
A Palestina também tem seus casos. Uma mesquita do século 13 foi transformada pelos israelenses em seminário, depois em escritório de partido político e, em 2019, em bar.
Da Espanha à Turquia, os muçulmanos convertiam igrejas em mesquitas com frequência, segundo Michael Greenhalgh em Constantinople to Córdoba: Dismantling Ancient Architecture in the East, North Africa and Islamic Spain (sem edição brasileira). O livro ainda mostra que sinagogas e igrejas também reusavam materiais, como colunas de mármore, de templos pilhados ou abandonados.
É a reciclagem arquitetônica da fé. São exemplos de como a guerra e a conquista, em diversos lugares e épocas, se apropriam dos locais de culto. É uma conversão imposta.
Mas há também as que ocorrem em comum acordo, como as igrejas católicas vazias que foram vendidas para se tornarem mesquitas ou templos budistas nos Estados Unidos. Ou os mosteiros alemães, que já vimos aqui no blog, que investem em novas atividades para sobreviver.
Existem também casos que mostram que lugares específicos do planeta guardam algo diferente. Chame de um cantinho de paz interior ou de fonte de energia especial, como preferir. Alguns são anteriores até mesmo a boa parte das religiões existentes. Arqueólogos descobriram, debaixo de uma pequena igreja ortodoxa grega em Shrewsbury, no Reino Unido, indícios de cerimônias pagãs que mostram que aquele é o mais antigo ponto de culto religioso sem interrupção no país. São 4 mil anos de fés sobrepostas, literalmente.
Parte das reações alarmadas frente ao novo status da Santa Sofia pode ter boas doses de islamofobia. Mas há dois fatores nesse caso que não se pode ignorar. O político, da Turquia de Erdoğan – ícone do populismo conservador e nacionalista – e o cultural.
Afinal, Santa Sofia não é uma igrejinha católica largada em Buffalo, Nova York. Nem uma igrejinha presbiteriana transfigurada em casa noturna no Bixiga, São Paulo.
15 SÉCULOS CHACOALHANDO O MUNDO
Justiniano foi coroado imperador romano do oriente em 527. O Império Bizantino, como também é conhecido, vivia seu auge. Justiniano estimulou as artes e ordenou a construção de uma nova Basílica de Santa Sofia (houve duas versões anteriores, destruídas em revoltas). Concluída em 537, beijando o Corno de Ouro, o estuário no encontro do Estreito de Bósforo com o Mar de Marmara, a basílica era o edifício mais alto do planeta.
Santa Sofia, também chamada de Hagia Sophia, em grego, ou Ayasofia, em turco, quer dizer "sagrada sabedoria". Ou seja, não se tratava de uma referência a nenhuma das santas Sofias martirizadas nos primórdios do cristianismo.
O reinado de Justiniano também estabeleceu a pentarquia. Àquela época, a Igreja não tinha um Vaticano, uma sede única, mas cinco, cada uma liderada por um patriarca: Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém.
Com a decadência de Roma, após o colapso do Império do Ocidente, Constantinopla estabeleceu-se, pelo menos em termos geopolíticos, como a grande metrópole de todo o mundo cristão. Entre 500 e 600, foi a maior cidade do planeta. No centro dela, estava Santa Sofia.
Pelos séculos seguintes houve uma série de rupturas e reconciliações entre as lideranças cristãs, até que, em 1054, um enviado do papa Leão IX à basílica excomungou o patriarca Miguel I de Constantinopla, que o excomungou de volta. Dessa forma, Santa Sofia assistiu ao início do Grande Cisma, a separação que colocou, de um lado, católicos romanos, e, de outro, católicos ortodoxos.
Em 1204, na Quarta Cruzada, gregos e francos se engalfinharam em Constantinopla em um episódio de bizarra violência. Católicos e ortodoxos esqueceram-se, por um tempo, da missão de reconquistar Jerusalém e promoveram cenas com crianças decepadas, estupros e saques de igrejas. O chão da Santa Sofia foi decorado com excrementos de animais e o altar principal virou palco de uma prostituta dançarina. Até 1261, por 57 anos, os católicos comandaram a basílica, quando os ortodoxos a retomaram.
Em 1453, o sultão Mehmed II liderou a conquista de Constantinopla, marcando o fim do domínio cristão sobre a cidade, que passaria a ser chamada de Istambul. Saem os bizantinos, chegam os otomanos.
Encantado com a estrutura (55 m de altura, 82 m de comprimento, 73 m de largura), "o Conquistador" fez as orações de sexta-feira na Santa Sofia. Depois, ordenou sua transformação em mesquita.
Os otomanos removeram sinos, altar, batistério, ambão, destruíram relíquias e cobriram mosaicos de Jesus, Maria, santos e anjos. Para a conversão, instalaram mimbar (púlpito), mirabe (nicho) e os quatro famosos minaretes, entre outras medidas.
Os ortodoxos, que puderam permanecer na cidade, transferiram sua sede para uma igreja, que estava decrépita e acabou abandonada três anos depois (para também ser transformada em mesquita). Já Santa Sofia, até 1616, com a conclusão da Mesquita do Sultão Ahmed (a majestosa Mesquita Azul), tornou-se a principal mesquita de Istambul. Um símbolo poderoso do império que, pelos séculos seguintes, amedrontaria a Europa, tomaria os Bálcãs, o Oriente Médio, o Mar Negro, boa parte do Mediterrâneo. A cidade que, por quase mil anos, foi o centro do cristianismo ortodoxo, virou a capital do Islã.
Até que a decadência bateu à porta e o Império Turco-Otomano começou a esfarelar no século 19, dando os últimos suspiros após a Primeira Guerra Mundial. Com Istambul ocupada pelos vencedores, soldados gregos tentaram instalar um sino na mesquita. Mesmo derrotados, os turcos os pararam ameaçando explodir o prédio.
O império já era passado, e novos e conturbados tempos chegaram. O movimento nacionalista de Mustafa Kemal, militar reformista conhecido como Atatürk ("pai dos turcos"), expulsou os gregos do país em 1920, aboliu o sultanato em 1922 e proclamou a república em 1923. Atatürk governou ditatorialmente até morrer, em 1938.
Nesse meio-tempo, instituiu uma série de medidas que aproximaram a jovem república turca do Ocidente. O islamismo não era mais a religião do Estado, o direito islâmico foi substituído, a poligamia foi abolida e o alfabeto latino foi introduzido.
Em 1935, Santa Sofia deixou de ser mesquita, após cinco séculos, para se tornar um museu. Para a parte religiosa e conservadora da população, foi uma facada no peito, como se o país tivesse vendido a alma ao Ocidente.
A nova direção guardou carpetes, descobrindo o mármore depois de centenas de anos, e voltou a exibir alguns mosaicos. Mas as condições do prédio eram precárias, com rachaduras e goteiras, o que exigiu uma série de melhorias pelas décadas seguintes.
Em 1985, ganhou o selo de patrimônio cultural da humanidade da Unesco. Em 2019, foi o ponto turístico mais visitado da Turquia, atraindo mais de 3,7 milhões de pessoas.
A VOLTA DA MESQUITA
Recep Tayyip Erdoğan foi eleito prefeito de Istambul em 1994 e iniciou uma série de medidas conservadoras, que incluíam até o cerceamento ao álcool. Tirando proveito de um país que sempre foi dividido entre classes progressistas e conservadoras, urbanas e rurais, ele proibiu pequenas coisas típicas da boemia da cidade, como mesas na calçada e beber na rua até de madrugada.
Erdoğan tornou-se primeiro-ministro turco em 2003 e presidente em 2014. Em todos esses anos, governou amparado pela população religiosa e conservadora. Nos últimos, jogou o parlamentarismo de lado e firmou-se no autoritarismo.
Mas ele sofreu derrotas políticas recentes. A oposição conquistou as prefeituras de Istambul e da capital, Ancara. Erdoğan, então, precisava de uma cartada contundente para seus fiéis seguidores. Nada melhor do que Santa Sofia. Ela voltaria a ser mesquita e que se danem as críticas internacionais, do Kremlin à Casa Branca.
Não foi um decreto da noite para o dia. Desde 2016 há orações na Santa Sofia. A pressão de grupos religiosos vinha aumentando. Em 2018, Erdoğan começou a falar abertamente em mudar o status do edifício, o que foi oficializado agora. O principal argumento para a medida diz que a conversão em museu, nos anos 1930, foi ilegal, já que a mesquita era uma propriedade privada do sultão e que Mehmed II, inclusive, pagou à Igreja Ortodoxa por ela.
"Como todas nossas mesquitas, as portas da Santa Sofia estarão abertas para locais e estrangeiros, muçulmanos ou não", declarou o presidente. O governo garantiu que os mosaicos cristãos serão preservados, mas cobertos durante as orações.
A não ser que a guerra volte a sacudir os muros de Constantinopla e destrua a enorme estrutura de silhares e tijolos, os tesouros bizantinos e muçulmanos que ela guarda (sem esquecer da pichação viking em um parapeito) continuarão ali. Além do mais, até o momento, Erdoğan mostrou que é somente um político conservador, nostálgico dos tempos dos sultões, autoritário e apegado ao poder. Pode não ser bom para a democracia, mas ainda assim é muito longe de um terrorista do Taliban que põe abaixo estátuas gigantes de Buda no Afeganistão (que, aliás, eram da mesma época da Santa Sofia). Sim, houve atentados em Sultanahmet, o centro histórico de Istambul, nos anos recentes. Mas aí, infelizmente, temos um cenário de medo e paranoia comum a outras metrópoles também.
Portanto, se as medidas tomadas continuarem nesse rumo, as coisas não devem mudar tanto para os visitantes. Horários mais restritos e novas normas de conduta a seguir, comuns a quaisquer templos. E, convenhamos, colega turista, educação nada tem a ver com religião. Tentar falar baixo, tirar o boné, desligar o flash quando solicitado é de bom tom e mostra respeito aos anfitriões e aos outros visitantes.
Uma preocupação que percorre as redes sociais diz respeito ao valor simbólico do edifício para todo o mundo. "Não é um tesouro dos turcos ou do Islã, mas de todo o mundo" e outros blablablás. Ora, tal qual a Catedral de Cusco, a Mesquita Real de Isfahan, Prambanan, Angkor Wat ou a Basílica de São Pedro.
Santa Sofia continuará sendo patrimônio da humanidade. Queiram Erdoğan e a Unesco ou não.
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