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Terra à vista!

Lixo do Pacífico já chegou a ilha que os humanos nunca conquistaram

Felipe van Deursen

08/11/2020 04h00

60º25'N, 172º44'O
Ilha de São Mateus
Alasca, Estados Unidos

Mateus era um desprezado coletor de impostos quando foi convidado por Jesus a entrar em seu círculo de apóstolos e, depois, se tornar um dos grandes santos da tradição cristã. É só ver a quantidade de lugares que levam seu nome.

Muito querido no finado Império Português, batizou cidades em diversas ex-colônias, como São Tomé e Príncipe e Moçambique, além do próprio Portugal. Só no Brasil são três municípios com seu nome.

A devoção a ele se espalhou também pela ortodoxa Rússia e chegou a um isolado pedaço de terra que, graças aos movimentos geopolíticos da história, deixou de integrar o extremo oriente russo e passou a fazer parte do extremo ocidente americano. A Ilha de São Mateus é tão inóspita que, apesar de ser conhecida há alguns séculos pelos humanos, jamais foi habitada por um tempo longo o suficiente para ser chamada de "habitável".

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Hoje, ela integra o Refúgio Nacional de Vida Selvagem Marítima do Alasca e fica a 295 km da ilha Nunivak, o local habitado mais próximo. Pode não parecer muito longe, mas é uma viagem de 24 horas pelo mar gelado. Com uma temperatura média anual de 3,2°C e um misto pouco convidativo de umidade e vento, São Mateus é um lugar para poucos. Ou ninguém.

O sinal mais antigo de alguma atividade humana são os resquícios de uma casa de 400 anos atrás. As ruínas da construção, que foi parcialmente cavada na terra, estão cobertas pela vegetação da tundra. Segundo estudos arqueológicos na ilha, quem a ergueu foram os thule, ancestrais dos modernos inuítes, os povos indígenas que habitam Canadá, Groenlândia e Alasca.

Mas as escavações mostraram uma fina camada de artefatos, o que indica que o lugar não teve ocupação permanente. Era mais um refúgio de temporada. A ilha tem as mesmas espécies de peixes e plantas que faziam parte da dieta dos thule do Alasca continental, então poderia ela ter algum assentamento, virar residência de alguém. Mas, ainda assim, não manteve ninguém por muito tempo. Repelia-os.

Em 1766, um oficial da marinha russa chamado Ivan Synd foi o primeiro europeu a chegar à ilha e a batizou em homenagem ao santo evangelista. Doze anos mais tarde, o britânico James Cook, em sua viagem que mapeou boa parte do noroeste da América do Norte, até o Estreito de Bering, acreditou, ao avistar São Mateus, que os russos não sabiam da sua existência e a chamou de Gore. Para os caçadores de baleias, ela era apenas a Ilha dos Ursos.

A Companhia Russo-Americana, empresa que explorava os territórios russos na América (o que incluía não só o Alasca como também partes da Califórnia e do Havaí), estabeleceu um assentamento experimental na ilha em 1809. À época, São Mateus era, como sabiam os baleeiros, um território de ursos. Havia cerca de 300 ursos-polares na ilha, praticamente um para cada quilômetro quadrado.

Os russos foram embora, e o império vendeu o Alasca aos Estados Unidos em 1867. Antes do fim do século, russos e americanos caçaram os ursos-polares até não sobrar nenhum na ilha.

Em 1916, um navio ironicamente chamado Great Bear ("grande urso"), afetado pela constante névoa em São Mateus, chocou-se contra as rochas da costa. Os náufragos montaram acampamento na ilha e aguardaram resgate.

Um deles, N.H. Bokum, construiu um transmissor e todas as noites subia um penhasco para emitir chamados de SOS. Mas ele acabou desistindo ao perceber que a umidade do ar atrapalhava o funcionamento, segundo uma reportagem da revista online canadense Hakai, especializada em ciência e culturas litorâneas. Foram 18 dias de penúria e expectativa até serem salvos. "Foi um gostinho do que o inverno nos teria trazido", lembrou mais tarde o proprietário do barco.

Em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, a guarda costeira americana estabeleceu na ilha um sistema de radionavegação para ajudar navios e aviões em ação no Teatro do Pacífico. Não era uma tarefa fácil. São Mateus encara nevascas brutais que duram até dez dias. A estação precisou de mais de 600 sacos de cimento apenas para a fundação, porque a chuva constante transformava o terreno em um mar de lama gelada. Depois de pronta, a instalação chegava a ficar 8 metros soterrada na neve. Durante sete meses por ano, a ilha ficava cercada de gelo. Para receber a correspondência, jogada de avião, os 19 homens precisaram se revezar em três turnos e arrastar tobogãs de suprimentos ao longo de quilômetros, diz a revista.

A guarda costeira, preocupada com a sobrevivência da equipe, introduziu, em agosto de 1944, 29 renas, para o caso de acabarem os suprimentos. Mas o que acabou foi a guerra, um ano depois.

Os homens deixaram aquele poço de isolamento para trás e os animais ficaram. A população de renas explodiu na ilha, que não tem nenhum predador e era cheia de líquens, uma delícia para elas. Mais ou menos o que rolou com as cabras das Ilhas dos Reis Magos, que vimos aqui no blog semanas atrás.

Ilha de São Mateus (foto: Kenneth D. Lemperi/wikicommons)

Em 1957, as renas já eram 1.300, segundo o biólogo Dave Klein, que acompanhava o crescimento dessa população. Em 1963, eram 6 mil. Três anos mais tarde, o número despencou para 42.

Dos 42 animais, só um era macho, provavelmente incapaz de se reproduzir, segundo o Anchorage Daily News, jornal da principal cidade do Alasca. Esqueletos das renas se acumulavam na tundra.

Anos mais tarde, Klein juntou forças com climatologistas especializados em Ártico. Em um estudo de 2009, eles concluíram que o inverno de 1963/64 foi um dos mais rigorosos no norte do Mar de Bering. Em fevereiro e março de 1964, vendavais castigaram a ilha constantemente, alguns gerando sensação térmica de – 57ºC.

Menos cinquenta e sete graus celsius não foi o pior. (!!) Grossas camadas de neve impediam que os animais sequer se alimentassem.

Muitas das fêmeas morreram prenhas. Ossadas de fetos se misturavam aos esqueletos de suas mães.


O frio matou as renas e expulsou todas as aventuras humanas nessa ilha. O terreno engoliu os poucos resquícios arqueológicos que resistiram às intempéries. Mas São Mateus ainda é um testemunho do que fazemos no planeta. Em 2013, uma expedição registrou que algumas áreas estavam cobertas de lixo da indústria pesqueira.

São Mateus não tem mais homens, não tem mais renas. Mas tem plástico.

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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.