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Os últimos cristãos menonitas no vale quirguiz das "florestas de maconha"

Felipe van Deursen

31/01/2021 04h00

Leitura da Bíblia antes da refeição. Foto: Wim Klerkx/creative commons

42º43'N, 75º06'L
Rot-Front
Ysik-Ata, Região Chuy, Quirguistão

Uma vila que manteve sua cultura, religião, idioma e costumes, herança de uma jornada que começou há quase 500 anos, pode estar com os dias contados. O mundo do século 21, pós-Guerra Fria, já não faz muito sentido para os descendentes de alemães menonitas de Rot-Front, no Quirguistão, vilarejo de colonização germânica nesse país de maioria muçulmana da Ásia Central.

Os menonitas são um grupo de denominações cristãs que surgiu na Europa do século 16, no contexto da Reforma Protestante. São anabatistas, acreditam que o verdadeiro batismo só pode ocorrer na vida adulta, e rejeitam os ritos tanto de católicos como de luteranos, anglicanos e outros grupos cristãos. Além disso, são adeptos a uma vida simples e sem modernidades – outros grupos anabatistas são os dunkers e os amish.

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Na década de 1520, os menonitas começaram a ser perseguidos na Europa. Um desses grupos iniciou uma longa jornada, saindo da Alemanha e dos Países Baixos e passando por vários países, até chegar ao Quirguistão no século 18. O país, que já havia passado pelo domínio dos turcos no século 15 e pelo dos mongóis no 17, agora era controlado pelos chineses.

Montanhas isolam ainda mais os menonitas quirguizes. Foto: Wim Klerkx/creative commons

Em 1876, a Rússia czarista incorporou a região e, a partir de então, o vilarejo fundado pelos imigrantes, chamado Bergtal, ganhou mais habitantes. Eram descendentes dos alemães que, no século 18, foram convidados por Catarina, a Grande para trabalhar no Império Russo e modernizar sua agricultura.

Em 1936, o Quirguistão virou oficialmente uma das repúblicas soviéticas, mas desde a década anterior o stalinismo já vinha se impondo pesadamente sobre os habitantes de Bergtal. Eles foram proibidos de falar em alemão, de seguir sua religião e de celebrar seus feriados. Para completar a repressão cultural, o nome da vila foi alterado para Rot-Front.

Os últimos alemães a chegarem à vila saíram da própria União Soviética, mas não de uma forma amistosa. Após a invasão nazista à URSS, em 1941, o ditador Josef Stalin deportou pessoas de etnia alemã a campos de trabalho forçado, alguns deles no Quirguistão.

Visita de domingo a um orfanato da cidade. Foto: Wim Klerkx/ creative commons

Quem foi separado da família e escravizado tinha dificuldade de manter laços antigos. Ainda mais que, nos tempos sob a Cortina de Ferro, na Guerra Fria, as novas gerações, forçadas a falar em quirguiz ou em russo e isoladas da Europa Ocidental, distanciaram-se cada vez mais do alemão.

Em 1991, o Quirguistão conquistou a independência, com o colapso soviético. Era para ser uma boa notícia para Rot-Front, afinal a liberdade religiosa foi retomada e outras proibições caíram por terra. Mas o que houve foi o contrário, segundo o site Eurasian Times.

Uma lei alemã determinava que cidadãos de etnia germânica que viviam nos países do antigo Pacto de Varsóvia, bloco militar liderado pela URSS, poderiam, se quisessem, viver na Alemanha, recém-unificada, como legítimos cidadãos alemães. Alguns foram, e o fluxo aumentou no decorrer da década, conforme a situação econômica do Quirguistão piorava. Entre 1990 e 1999, o PIB caiu drasticamente.

A população alemã no Quirguistão era de cerca de 100 mil pessoas nos anos 1990. Em 2019, mal e mal chegava a 8 mil. Em Rot-Front, hoje, restam menos de 100 habitantes. Apenas dez famílias permanecem nessa vila, o que talvez signifique o fim da aventura menonita na Ásia Central.

No verão, os cavalos das fazendas comunitárias permanecem no alto das montanhas para escapar do calor. Foto:
Wim Klerkx/ creative commons

O fotógrafo holandês Wim Klerkx, autor das imagens acima, visitou Rot-Front. Recomendo acessar o site dele, que tem muito mais fotos e informações a respeito. Ah, e se você achou que a cidade parece um tanto viva, tem razão. As imagens são de 1996 e 1997. Hoje, não resta quase ninguém.

FLORESTA CANÁBICA

O mesmo Vale de Chuy, onde ficam a bela e solitária Torre Burana e o que sobrou de Rot-Front, era mais conhecido na região não tanto pelos cristãos germânicos que rejeitavam comodidades como a televisão, mas mais por ser uma das maiores fontes de maconha da URSS.

Torre Burana, no Vale Chuí no, Quirguistão (Crédito: iStock)

Tanto a porção norte no vale, no Quirguistão, como o lado sul, no vizinho Cazaquistão, são reconhecidas, há tempos, como uma terra de maconha selvagem. A dichka, como é chamada, é famosa por ser abundante, ótima e potente. Dizem…

Os soviéticos tentaram de tudo que é jeito eliminar a dichka. Queimaram campos inteiros, usaram pesticidas testados e não testados. Mas, como em todo lugar que abraça a guerra às drogas, sejam governos democráticos de direita ou de esquerda, sejam ditaduras fascistas ou socialistas, eles fracassaram.

A União Soviética morreu. A maconha, não.

Boa parte da erva cresce no entorno do belo lago Issyk-Kul, cercado por picos nevados da cordilheira Tian Shan. O país tem cerca de 7 mil hectares de cannabis selvagem, cuja resina a torna ideal para a produção de haxixe.

A produção tradicional de haxixe no Quirguistão envolve um ritual particular. Primeiro, homens e cavalos tomam um bom banho. Em seguida, os cavaleiros, completamente nus, cavalgam pelos campos, as "florestas de maconha", até ficarem cobertos pela resina, que então é raspada e prensada.

O ritual, praticamente um fetiche erótico chapado, já está aposentado no dia a dia. Os fazendeiros simplesmente esfregam as plantas, recolhem a resina e a empacotam em caixas de fósforo. Muitas vezes, o trabalho rola na calada da noite.

Como em muitos países, a maconha é ilegal no Quirguistão. Como em um punhado deles, sua legalização tem sido debatida nos últimos anos. Mas só o Quirguistão, além de outros vizinhos asiáticos, pode dizer que é a terra natal da cannabis.

E pensar que, quando os menonitas chegaram, há mais de 200 anos, cheios de regras e padrões, a maconha estava longe de ser proibida no país que os acolheu. A URSS baniu o cultivo nos anos 1930, mas fez vista grossa para o consumo nas décadas seguintes.

 

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Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.