Terra à Vista http://terraavista.blogosfera.uol.com.br Os lugares mais incríveis e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando. Sun, 19 Sep 2021 07:00:37 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A erupção vulcânica que, de tão incrível, virou patrimônio da humanidade http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/09/19/a-erupcao-vulcanica-que-de-tao-incrivel-virou-patrimonio-da-humanidade/ http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/09/19/a-erupcao-vulcanica-que-de-tao-incrivel-virou-patrimonio-da-humanidade/#respond Sun, 19 Sep 2021 07:00:37 +0000 http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/?p=2145

Westman Islands beach view with Smaeyjar islands in background. Iceland landscape. Vestmannaeyjar

63º18’N, 20º36’O
Surtsey
Vestmannaeyjar, Região Sul, Islândia

Parecia cena de seriado japonês. Uma erupção vulcânica submarina monstruosa, colunas de fumaça, explosões e, de repente, uma ilha surge onde antes não havia nada, bem diante dos nossos olhos.

Aconteceu dia desses. Na semana seguinte ao encerramento das Olimpíadas de Tóquio, o vulcão submarino Fukutoku-Okanoba entrou em erupção. No dia 15 de agosto, a guarda costeira japonesa observou que a explosão formou uma ilha em forma de C.

Pior é que não se trata de caso isolado – afinal “ilha vulcânica” é uma das classificações que aprendemos na aula de geografia. Mas alguns lugares da Terra têm propensão bem maior a ganhar ilhas que brotam assim, de erupções.

O Japão, que fica entre três placas tectônicas, é um exemplo. Só no século 20, o país teve quase tantos eventos do tipo quanto o Brasil sofreu golpes de Estado. Aconteceu em 1904, 1914 e 1986. Todas essas ilhas já submergiram de novo, por causa da erosão.

DORSAL ATLÂNTICA

Surtsey em 1999 (foto: wikicommons)

Outro país com episódios assim é a Islândia.  Lá, uma erupção específica tornou-se especial porque a ilha resultante ainda não afundou de volta.

No dia 14 de novembro de 1963, a tripulação de uma traineira avistou uma coluna de fumaça negra. O capitão achou que fosse um barco em chamas e resolveu investigar. Mas era uma erupção que chegava à superfície.

Ao longo dos dias seguintes, as explosões geraram uma ilha de rochas vulcânicas, formadas no encontro da lava com a água marinha. Normalmente, esse material não dura muito. Marés, tempestades e ventos dão um sumiço nas ilhotas novinhas, como aconteceu no Japão. Mas aquela erupção estava inspirada, e o ritmo de rochas que ela criava superava o da erosão. Ou seja, mais massa emergia do que afundava. Então, dois meses depois, a ilha já tinha mais de 1 km de diâmetro.

O acontecimento logo chamou a atenção da comunidade internacional. Em dezembro, o fotojornalista francês Gérard Géry, ao lado de dois aventureiros conterrâneos, foi o primeiro a pisar no novo território. Eles ficaram pouco tempo, o carro pifou, passaram alguns perrengues em meio à erupção, que ainda estava rolando.

A erupção, em 1963 (foto: wikicommons)

A empreitada rendeu uma matéria na revista Paris Match e um princípio de crise diplomática. É que Géry, em sua reportagem, resolveu fincar a bandeira tricolor de seu país no solo instável da ilha, mesmo estando a meros 33 km da costa islandesa. A Islândia tratou de cortar logo a brincadeirinha – essa antiga e insistente sede imperialista que acomete as potências – e iniciou a exploração científica da área.

No início de 1964, fontes de lava menos explosivas geraram rochas muito mais resistentes à erosão, que cobriram boa parte das pilhas de escórias anteriores. Além disso, a ilha chegou a um tamanho que dificultava a chegada da água ao seu centro, o que aceleraria o processo de erosão. Esse cenário a deixou muito mais estável.

Isso permitiria à ciência assistir a algo impressionante. O nascimento de uma ilha, que não seria mais um “fogo de palha tectônico” como as outras e teria tempo suficiente para ganhar vida, literalmente falando.

Em 1964 as correntes marinhas levaram sementes. Bactérias e fungos logo surgiram. No ano seguinte, a primeira planta vascular, mais sofisticada do que algas e briófitas. Logo elas se multiplicaram, e então chegaram animais invertebrados, depois os pássaros – inclusive o adorável papagaio-do-mar.

Por isso, o governo transformou o local, ainda em 1965, em reserva natural. A erupção acabou só em 1967, e desde então somente poucos cientistas têm acesso à ilha.

Ela ficou importante demais para não ter um nome, então a batizaram de Surtsey. Na mitologia nórdica, Surt é o gigante de fogo que guarda a entrada do Muspelheim, a terra do fogo, um dos nove mundos conectados por Yggdrasil, a grande árvore do universo. No Ragnarök, ele luta contra os Aesir, a turma dos principais deuses do panteão nórdico.

Surtsey é quase tão inacessível quanto Muspelheim. A ilha é proibida para visitação ou qualquer outra atividade, para que os biólogos e outros profissionais possam acompanhar o desenvolvimento dessas formas de vida sem interferência humana.

Nem sempre funcionou. Segundo a revista americana The Monitor, que visitou a ilha, uma turma do arquipélago Vestmannaeyjarr (também chamado, para facilitar, de Westman) plantou batatas em Surtsey. E tem a história de um cidadão que, tempos atrás, resolveu mandar o número dois no chão da ilha. De tão fértil o solo, as sementes de tomate contidas em seu cocô renderam frutos.

Tanto batatas como os tomates do pé-de-bosta foram removidos, para não interferir no desenvolvimento natural das formas de vida. Os cientistas já catalogaram dezenas de espécies de aves e centenas de invertebrados.

Por acreditar que a ilha configura um acontecimento esplêndido para a geologia e a biologia, a Unesco a decretou, em 2008, patrimônio natural da humanidade. Uma ilha com menos de 60 anos de existência, e que só podemos ver a distância.

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Como estas curiosas estruturas circulares podem conter o avanço do Saara http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/09/12/como-estas-curiosas-estruturas-circulares-podem-conter-o-avanco-do-saara/ http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/09/12/como-estas-curiosas-estruturas-circulares-podem-conter-o-avanco-do-saara/#respond Sun, 12 Sep 2021 07:00:05 +0000 http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/?p=2126

Foto: reprodução Instagram @ecogazzetta

15º29’N, 13º09’O
Grande Muralha Verde
Kanel, Matam, Senegal

Quando a harmonia entre dois vizinhos anda balançada, por motivos internos ou externos, é na fronteira que isso é mais sentido, seja na calçada que você divide com a vizinha que teima em reclamar dos latidos do seu cachorro seja nas tensões que envolvem crises migratórias, tráfico de drogas e milícias rivais, como entre Colômbia e Venezuela. Muitas e muitas vezes, a própria fronteira é objeto de disputa, de Armênia vs. Azerbaijão a Zâmbia vs. Zimbábue.

Em 1989, uma pequena guerra na África Ocidental teve um pouco de tudo isso. Seis anos antes, a Mauritânia iniciou um programa estatal de agricultura que prejudicou pequenos produtores rurais no país e no Senegal, do outro lado de um rio que também se chama Senegal.

Esses países são duas ex-colônias francesas, ambas de imensa maioria islâmica. Mas após a independência elas seguiram caminhos diferentes. A Mauritânia reforçou as ligações árabes (hoje virtualmente toda a população é muçulmana). Já Senegal manteve conexões com o mundo francófono e tem uma minoria cristã. O distanciamento ficou mais abalado quando um período de secas no Sahel, a zona de transição entre o deserto e a savana, apertou ainda mais o cerco aos camponeses nos dois lados da fronteira.

Quando a realidade é essa, vale qualquer desculpa para o pau começar a cantar. Até pasto. Disputas em torno de áreas de pastoreio nas margens do rio levaram à ruptura diplomática e, depois, à guerra. Em dois anos, o conflito deixou algumas centenas de mortos e muitos milhares de refugiados.

Baobá, a famosa árvore africana, no deserto senegalês. Foto: iStockphotos

O INIMIGO AGORA É OUTRO

Hoje, a fronteira entre os dois países é foco de um novo conflito, contra um inimigo comum. Nos últimos meses, jardins circulares têm surgido na área, o que poderia dar a impressão de que a luta é contra alienígenas. Mas não se trata de um filme de M. Night Shyamalan. Os jardins são uma nova arma para tentar conter a desertificação que ameaça todos os países do Sahel.

Foto: reprodução

Mais de dez jardins circulares, chamados de tolou keur, foram implementados nos últimos meses. Eles funcionam como uma mistura de pomar e farmácia naturais. Os círculos interiores têm plantas medicinais. Nos intermediários, mamão, limão, caju, manga e outras frutas. Nos exteriores, baobás e mognos africanos providenciam nutrientes às plantas, sombra aos humanos e proteção contra os ventos que arrastam a areia do deserto.

Todas as espécies são resistentes às intempéries do clima. Além disso, o formato circular permite que as raízes cresçam em direção ao centro, o que facilita a retenção de água e a compostagem, explica a agência de reflorestamento do Senegal.

Foto: reprodução Instagram @ahmedlatouri

O grande fator que tornou a iniciativa bem-sucedida até o momento, segundo especialistas, é que ela engaja as comunidades locais a participar. Esse seria o grande diferencial em relação a outras ações da chamada Grande Muralha Verde, projeto que ambiciona barrar o avanço da desertificação com uma faixa de 8 mil quilômetros de florestas do Senegal, às margens do Atlântico, ao Djibuti, no Mar Vermelho, do outro lado do continente.

O problema é que o projeto da União Africana, iniciado em 2007, atingiu apenas 4% da ousada meta de cobrir 100 milhões de hectares de árvores. A Grande Muralha Verde é um colosso que envolve a política e o aparato burocrático de diversos países e ainda incita debates científicos sobre as principais causas da desertificação (variações climáticas, excesso de áreas de pasto, represas, conflitos étnicos, grandes secas, ventos, chuvas) e a melhor maneira de combatê-la.

Foto: reprodução Instagram @ecolibri.senegal

Enquanto isso, os senegaleses arregaçaram as mangas e investiram em algo prático. Aly Ndiaye, engenheiro agrícola que participou da criação do tolou keur, disse à Reuters que o objetivo era fazer jardins menores, produtivos, permanentes, sequenciais e úteis às comunidades, em vez de uma longa e perene linha de árvores.

Curiosamente, foi a pandemia que criou o cenário para o desenvolvimento do tolou keur. No ano passado, o Senegal fechou as fronteiras para conter a disseminação do coronavírus – o que parecia estar ajudando: o país teve um pico de apenas 160 casos diários em 2020, bem diferente de 2021, quando passou dos mil casos diários em julho.

Com tudo fechado, as comunidades rurais foram as mais expostas, pois dependiam mais de alimentos e remédios vindos do exterior. Foi aí que a agência de reflorestamento viu que era necessário incentivar um programa que as tornasse mais autossustentáveis, segundo a Al Jazeera.

Nem todos os jardins estão prosperando. Em alguns, a desertificação não parece ter freado. Mas em Kanel, por exemplo, tem dado certo. Os cuidadores precisaram só dar um jeito de lidar com os roedores. Um muro e cães mantêm as pragas afastadas da hortelã e do hibisco.

Mudanças climáticas influenciam a política, queiram ou não os negacionistas. A seca ajudou a estourar uma pequena e esquecida guerra no Senegal nos anos 1980. E uma seca nos anos 2000 pavimentou o caminho para a maior guerra do mundo na década passada, na Síria.

A iniciativa no Senegal pode mostrar em escala internacional o que a turma dos “pais de planta” sabe bem. Jardins trazem paz.

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Como os tchecos piratearam Indiana Jones para derrubar o comunismo http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/09/05/como-os-tchecos-piratearam-indiana-jones-para-derrubar-o-comunismo/ http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/09/05/como-os-tchecos-piratearam-indiana-jones-para-derrubar-o-comunismo/#respond Sun, 05 Sep 2021 07:00:09 +0000 http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/?p=2107

Foto: iStockphotos

50º04’N, 14º25’L
Praça Venceslau
Cidade Nova, Praga, Tchéquia

Em um mundo de restrições políticas, culturais e sociais, uma fanfic pode alimentar revoluções. Aconteceu na Praga dos anos 1980. A praça principal da capital da então Tchecoslováquia, acostumada a servir de palco de grandes acontecimentos, estava tomada por manifestantes quando o maior arqueólogo do mundo chegou à cidade. Ele mesmo, Indiana Jones.

Como o herói do chicote foi parar ali? Hora de olhar o diário de anotações do intrépido viajante.

No século 9, a dinastia dos Premíslidas emergiu como a soberana de um novo ducado que surgiu na Europa Central, a Boêmia (uma das regiões históricas que formam a atual Tchéquia). Borzivógio (ou Bořivoj), o primeiro desses duques, ordenou a construção do Castelo de Praga, enorme complexo que incluiria capelas, torres e igrejas, como a Catedral de São Vito, cuja primeira versão foi erguida sob ordens de Venceslau, o duque da Boêmia quando corriam os anos 920.

Vista aérea do Castelo de Praga e da catedral de São Vitus. Foto: iStockphotos

Era uma época violenta, com ameaças de dentro e de fora do pequeno ducado. Em 935, Venceslau foi assassinado em um complô comandado pelo próprio irmão, Boleslau. O crime o elevou à condição de mártir e, depois, à canonização.

No século 14, incorporada ao Sacro Império Romano Germânico, a Boêmia viveu sua idade de ouro sob o reinado de Carlos IV, que fez de Praga a residência imperial e fundou muitas instituições. Em 1348, ele implementou uma série de mudanças urbanísticas na cidade, que incluíam praças, mercados e outras áreas abertas. Um desses marcos da Cidade Nova (Nové Město) era o Koňský trh, o Mercado de Cavalos.

Ao longo dos séculos seguintes, esse mercado medieval de equinos se desenvolveu como um importante centro comercial, enquanto Praga, sob domínio dos Habsburgo austríacos, que assumiram o controle do país a partir do século 16, ganhava palácios barrocos e jardins.

Na década de 1890, boa parte da Cidade Nova foi demolida e reconstruída, ganhando os contornos atuais. A paisagem que abobalha zilhões de turistas todos os anos é essa mistura de 900 anos de arquitetura europeia.

O fim do século 19 era uma época de nacionalismos, de construção de identidades e heróis nacionais. Então, o local ganhou um novo nome, Praça Venceslau. Uma enorme estátua equestre representando o santo e padroeiro da Boêmia foi inaugurada, em 1912, em frente ao Museu Nacional.

REVOLUÇÕES

Estátua do Rei Wenceslas, na praça homônima, em Praga. Foto: iStockphotos

O século 20 desfilou na praça (que na verdade é mais um bulevar do que uma praça). Em 1918, a independência da Tchecoslováquia foi declarada nela – o novo país surgia em uma Europa toda redesenhada após a Primeira Guerra e o fim dos impérios Alemão, Austro-Húngaro e Turco-Otomano.

Em 1945, no Levante de Praga, uma violenta revolta dos tchecos contra os nazistas, que invadiram o país em 1938, diversos prédios foram destruídos. Em 1968, soviéticos e seus aliados do Pacto de Varsóvia invadiram a Tchecoslováquia para suprimir a Primavera de Praga, movimento de manifestações públicas e reformas políticas que chamou atenção do mundo todo (e irritou os socialistas, que dominavam o país).

Cinco meses depois, em janeiro de 1969, no meio da praça, o estudante Jan Palach ateou fogo no próprio corpo em protesto contra a invasão. Em março, a seleção tcheca de hóquei no gelo derrotou a União Soviética no Campeonato Mundial, o que levou uma multidão à Venceslau para comemorar a vitória e se manifestar contra a ocupação.

Em 16 de janeiro de 1989, no aniversário de 20 anos da morte de Jan Palach, milhares de pessoas se reuniram na praça. Elas voltaram, dia após dia, e o ato virou um protesto barulhento contra o regime, já decadente. A polícia reprimiu, e muita gente foi presa.

Indiana Jones estava lá naquele dia e precisava escapar para voltar para casa. Essa é a premissa de The Adventures of Indiana Jones in Wenceslas Square in Prague on January 16, 1989, jogo de computador que colocava o herói no centro dos acontecimentos do país.

Trata-se de um joguinho simples, em que toda a diversão e a mecânica se baseiam em textos – em 2020 ele foi ressuscitado na internet. O que o torna especial é o contexto em que foi criado.

O primeiro filme do arqueólogo, Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida, estreou na Tchecoslováquia em 1985, longos quatro anos após ser lançado. A janela que permitia a exibição de produções ocidentais no país era estreita, então tudo chegava atrasado ou sequer chegava.

Tela de início do jogo, na versão de 2020

Isso sem contar, é claro, a pirataria. Um símbolo dessa repressão cultural nos países da Cortina de Ferro é o Muro de Lennon, que passou a ganhar grafites e cartazes pró-liberdade e democracia após a morte de John Lennon, em 1980, e que fica, justamente, em Praga.

Indiana fascinou os tchecoslovacos desde o princípio. Tanto que alguns jovens programadores, como František Fuka – inspirados pelas aventuras e levando a imaginação a preencher as lacunas deixadas pela falta de informação em um mundo com imprensa controlada e raro acesso ao entretenimento ocidental – passaram a desenvolver jogos estrelados por Indiana. Não preciso dizer que direitos autorais eram uma preocupação mundana, era tudo na base da fanfic marota, da pirataria malandra (tinha até um certo Indiana Joe no meio deles).

Um punhado de jogos, sempre aventuras baseadas em texto, tipo um livro-jogo eletrônico, surgiu nos anos seguintes, tendo Indiana Jones como herói. Faziam sucesso pelo teor subversivo que significava ter em mãos algo que escapou da censura, mas também porque eram escritos em tcheco (a maioria dos poucos jogos disponíveis eram em inglês, idioma então pouco dominado). Fuka criou alguns deles, virou uma referência do assunto e até dublou filmes de Hollywood, que chegavam contrabandeados e eram repassados de mão em mão em cópias de VHS.

O título ambientado na praça Venceslau em janeiro de 1989 saiu pouco após aquelas manifestações e fez parte de toda uma mídia alternativa ativista que ganhou corpo contra o governo por meio de músicas, panfletos e samizdat (manuscritos de obras banidas que circulavam ilegalmente, segundo uma reportagem do site Ars Technica, que conta a história de Indiana em Praga). Mas não se sabe quem o criou. Nem Fuka sabe. O(a) autor(a) usou um pseudônimo, por temer represálias.

SUCO DE ANOS 80

Foto: iStockphotos

Indiana Jones não foi o único ícone oitentista a virar videogame clandestino na Tchecoslováquia. Rambo também deu seus pulos.

No filme soviético The Detached Mission, o major Shatokhin se infiltra em uma base militar americana e desmonta uma operação da CIA que planejava sabotar as negociações de desarmamento entre americanos e soviéticos. O longa foi lançado em 1985, pouco após Rambo 2 – A Missão, e foi visto como a resposta russa ao personagem de Sylvester Stallone.

Então, em 1988, um programador tchecoslovaco resolveu juntar Rambo e Shatokhin em um mesmo jogo. A ideia inicial era ter o major russo como vilão, mas ele temeu a repercussão. Então, Shatokhin, o jogo, coloca você em uma base soviética com a missão de matar Rambo.

O jogo era uma grande sátira do socialismo, com direito a foice e martelo na tela inicial. Um humor semelhante ao de Broforce, que em 2014 ridicularizou as testosterônicas loucuras imperialistas americanas. Além disso, como bom jogo das antigas, Shatokhin tinha seus códigos secretos: ao digitar K-G-B, você passava a controlar Rambo. Coisa linda.

Praça Venceslau, novembro de 1989 (foto: wikicommons)

No fim daquele histórico 1989, a Venceslau voltou a se agitar. Entre 17 de novembro e 29 de dezembro, milhares de pessoas tomaram a grande praça e outros pontos de encontro no país em uma série de protestos não-violentos contra a repressão, o autoritarismo, a pasmaceira econômica e a favor da libertação do dramaturgo Vacláv Ravel, líder da oposição.

A Revolução de Veludo, como ficou conhecida, derrotou o regime. É preciso lembrar (infelizmente) que em 1989 o socialismo soviético era algo real, não um fantasma sem sentido usado para alimentar correntes de fake news e manifestações apalermadas nas redes sociais.

No ano seguinte, Ravel foi eleito presidente e liderou a redemocratização. No primeiro dia de 1993, após a separação ser aprovada, a Tchecoslováquia virou história e deu lugar à República Tcheca e à República Eslovaca. Praga seria a capital dos tchecos e Bratislava, dos eslovacos.

Em 2016, a República Tcheca mudou de nome. Na verdade, adotou a forma abreviada e solicitou à ONU que a incluísse em sua base de dados. Assim, República Tcheca é a denominação formal, assim como a República Federativa do Brasil ou os Estados Unidos Mexicanos. Tchéquia é o nome abreviado.

Todos esses acontecimentos fizeram com que The Adventures of Indiana Jones in Wenceslas Square in Prague on January 16, 1989 se tornasse um símbolo dessa época de transformação e uma obra fictícia quase profética. Venceslau, em seus mil anos no imaginário popular como duque, mártir, santo, herói nacional e padroeiro, também é personagem de videogame.

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A cruz e a suástica: o que nazistas faziam na Amazônia antes da 2ª Guerra http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/08/29/a-cruz-e-a-suastica-o-que-nazistas-faziam-na-amazonia-antes-da-2a-guerra/ http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/08/29/a-cruz-e-a-suastica-o-que-nazistas-faziam-na-amazonia-antes-da-2a-guerra/#respond Sun, 29 Aug 2021 07:00:34 +0000 http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/?p=2086

Foto: reprodução Instagram @icmbio/Rubens Matsushita

0º38’S, 52º30’O
Cachoeira de Santo Antônio
Rio Jari, Laranjal do Jari, Amapá

Em 1935, o governo de Getúlio Vargas fazia o jogo malandro de flertar com os Estados Unidos e a Alemanha nazista, então rivais. O nazismo não era proibido no Brasil e tinha seus simpatizantes espalhados em regiões de colonização alemã. Nesse contexto de buscar aprofundar relações diplomáticas, comerciais, militares e até científicas, uma expedição nazista chegou à Amazônia naquele ano.

A missão era chefiada por Otto Schulz-Kampfhenkel, que alardeava na imprensa dos dois países seus feitos. O explorador e zoólogo percorreria o vale do rio Jari, entre os atuais Amapá e Pará, e teria à disposição até um avião. Ao lado dele iriam o piloto Gerd Kahle, o engenheiro Gerhard Krause e Joseph Greiner, alemão que, acredita-se, vivia no Brasil havia anos e conhecia bem a região. Um time de 21 ajudantes locais orientaria os estrangeiros.

Da esquerda para a direita: Gerd Kahle, Schulz-Kampfhenkel e o engenheiro Krause, na partida para o Pará. Foto: Ullstein bild via Getty Images

Entre setembro de 1935 e março de 1937, Schulz-Kampfhenkel percorreu o Jari até a fronteira com a Guiana Francesa. A equipe coletou cerca de 500 amostras de mamíferos, 1.000 de outros animais, 1.200 objetos dos povos aparaí, wayana e wajãpi, fez 2.500 fotos e gastou 2.700 metros de filme. Boa parte acabou em museus de Berlim.

O explorador ficou famoso após lançar, em 1938, o filme Rätsel der Urwaldhölle (“Mistérios da Floresta Infernal”), além de uma exposição e um livro baseados na experiência brasileira. Naquele mesmo ano, o governo Vargas, já convertido na ditadura do Estado Novo, rompeu com a Alemanha, extinguiu o Partido Nazista no Brasil e até vetou o ensino de alemão nas escolas. O que significou que, em termos diplomáticos, o trabalho de Schulz-Kampfhenkel não ajudou a Alemanha a aumentar sua influência no Brasil.

A suástica na Amazônia, em 1935 (reprodução “Mistérios da Floresta Infernal”)

Em termos científicos, a expedição também fracassou. Segundo Holger Stoecker, da Universidade Humboldt de Berlim, em entrevista à Deutsche Welle, “Schulz-Kampfhenkel não tinha um interesse científico real, sua motivação não era tão voltada à descoberta. Aparentemente essas expedições eram passos para promover sua carreira e fazer contatos na política, em instituições científicas”. A missão serviu para coletar bastante material, mas não resultou em nenhuma descoberta. Schulz-Kampfhenkel não analisou as amostras nem escreveu artigos científicos.

Em vez disso, ele se promoveu. Dizia que a missão no Jari era única no mundo, sendo que, durante o Terceiro Reich, pesquisadores da Alemanha trabalharam também em São Paulo, Paraná, Mato Grosso e Espírito Santo, segundo a DW. Logo, não era pioneira nem entre alemães, muito menos em escala global. É aquele marketing do exagero extremo, em que você solta uma grande cascata e espera morderem a isca, tipo uma lanchonete alardear que faz o “best burger in the world” mesmo que não seja nem o melhor hambúrguer de Curitiba.

Ele era bom nisso. Schulz-Kampfhenkel aproveitou a fama e acabou virando um consultor do Terceiro Reich para assuntos ligados à Amazônia.

GUIANA BRASILEIRA?

Expedição alemã dependeu do apoio do povo aparaí. Foto: Ullstein bild via Getty Images

Em 1940, Heinrich Himmler, líder da SS e um sujeito que acreditava que a ~raça ariana~ descendia de grãos vivos que vieram do espaço sideral, solicitou a Schulz-Kampfhenkel que analisasse um plano de anexação das Guianas proposto pelo aventureiro austríaco Heinrich Peskoller.

Kampfhenkel teria se apropriado da ideia, dizendo: “Sabe que eu também estava pensando nisso quando estava lá?”. Só que não há nenhuma evidência de que ele tenha, de fato, levantado a hipótese de anexação durante a viagem no Amapá.

Que Guianas eram essas? A Francesa, que faz fronteira com o Amapá, o Suriname, então Guiana Holandesa, e a Guiana Inglesa, hoje Guiana. O Amapá serviria de porta de entrada para a conquista e a criação da Guiana Alemã, mas não há sinais de que ele também estaria na mira. As três Guianas eram alvos mais atraentes porque, além de serem colônias distantes de suas metrópoles, estão posicionadas estrategicamente, mais próximas ao Caribe, e têm riquezas minerais – a Guiana Inglesa era fonte de ouro e diamante e, hoje, tem petróleo suficiente para torná-la uma das nações mais ricas per capita do mundo.

O plano jamais foi para frente, por uma questão muito simples. Com a invasão da França e dos Países Baixos, naquele mesmo ano, suas colônias já faziam parte do Terceiro Reich automaticamente. A queda do Reino Unido e suas possessões no mundo todo era uma questão de tempo, na cabeça perturbada dos nazistas.

Cruz com suástica nazista no local onde foi enterrado Joseph Greiner. Foto: Ullstein Bild via Getty Images

No fim das contas, a expedição deixou uma única e curiosa herança. À beira do Jari, próxima à cachoeira de Santo Antônio, uma grande cruz, marcada com a suástica nazista, indica que ali foi enterrado Joseph Greiner, o teuto-brasileiro que acompanhava Schulz-Kampfhenkel e que morreu em 1936, possivelmente de malária. O que indica o sofrimento pelo que passou a missão.

Malária, difteria, calor, chuvas e avião pifado logo no começo da jornada deixaram tudo mais difícil. O Jari é de difícil navegação, então eles precisaram percorrer grandes distâncias a pé e contar, o tempo todo, com o serviço e a ajuda dos aparaí. Concluíram a missão, que pode ter sido um fiasco científico e diplomático, mas ela continua rendendo uns bons causos 85 anos depois.

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Castelo em Gana transforma horrores da escravidão em dinheiro de turistas http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/08/22/castelo-em-gana-transforma-horrores-da-escravidao-em-dinheiro-de-turistas/ http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/08/22/castelo-em-gana-transforma-horrores-da-escravidao-em-dinheiro-de-turistas/#respond Sun, 22 Aug 2021 07:00:13 +0000 http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/?p=2059

(Crédito: iStock)

5º04’N, 1º20’O
Castelo de São Jorge da Mina
Elmina, Região Central, Gana

Considerado por publicações internacionais um dos novos-destinos-turísticos-que-você-pre-ci-sa-conhecer, Gana é um país tropical, pacífico e com atrações diversas para a turma da praia, a do ecoturismo, a da cultura e também a dos eventos, impulsionados pelo crescimento econômico acima dos 6% no triênio 2017-9. É um país que só não é mais conhecido por causa de nossa eterna e preguiçosa ignorância quando o assunto é África.

Um dos principais atrativos de Gana é o Castelo de São Jorge da Mina, ou Elmina. Marco da arquitetura colonial europeia e polo irradiador da grande tragédia global que ergueu o mundo em que vivemos, a obra vinha batendo recordes consecutivos de visitantes até a chegada da pandemia, segundo o site Ghana Business News.

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Boa parte desses turistas é americana. São descendentes das pessoas levadas à força ao longo dos três séculos e meio de tráfico atlântico. Desejam ver a porta de não retorno desses antepassados escravizados, conhecer de perto parte de sua história.

O castelo serviu como um dos principais portos da chamada Costa país (embora a chegada de escravos às Treze Colônias fosse anterior a 1619). Por isso, a maioria dos quase 1 milhão de turistas estrangeiros que foram a Gana naquele ano era dos EUA. O presidente ganês, Nana Akuffo-Ado, convidou publicamente os descendentes de escravizados a visitar o país no que ele chamou de “ano do retorno”. Até um festival foi criado para a ocasião, o Full Circle.

CASTELO MAL ASSOMBRADO

(Crédito: iStock)

A história de Elmina começa com Fernão Gomes. Cristão-novo – como eram chamados os judeus forçados a se converter ao cristianismo, durante a onda antissemita que tomou a Península Ibérica nos séculos 15 e 16 –, ele arrematou, em 1469, o primeiro contrato de escravos leiloado pela Coroa de Portugal.

À medida que descia a costa da África Ocidental, a frota de Gomes descobria mercados lucrativos, que acabavam batizando essas regiões para os europeus, mais ou menos como as ruas especializadas do comércio paulistano, só que em outra escala. Assim, em vez de uma Rua das Noivas da vida, eles iam descortinando a Costa dos Grãos (atual Libéria), a Costa do Marfim (também chamada Costa do Dente) e por aí vai.

Em 1472, localizaram garimpos a 150 km do litoral. Os acãs (ou akans), grupo étnico que dominava a região e que inclui povos como os fantes, mantinham a exploração de ouro e sua comercialização com uma vasta clientela, que incluía árabes e berberes. Os portugueses entraram no jogo e logo passaram a chamar a área de Costa da Mina (ou do Ouro), apesar de o metal ser extraído de rios, não de minas.

Dez anos mais tarde, em 1482, os garimpos acãs davam tanto lucro para Lisboa que a Coroa decidiu assumir o controle e afastar concorrentes europeus. Para tanto, enviou uma expedição a fim de conseguir a permissão dos governantes locais para erguer uma fortaleza no litoral. “Uma frota de caravelas foi organizada em Portugal para transportar pedreiros, carpinteiros e materiais de construção para o local. Eles completaram a construção em três semanas, chamando-a de São Jorge da Mina. A fortaleza foi aclamada como ‘o primeiro edifício de pedra na região dos etíopes da Guiné desde a criação do mundo’”, escreveu o historiador Martin Meredith em O Destino da África (Zahar).

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O castelo foi erguido entre dois reinos fantes, Fetu e Eguafo. Para não tirar dúvidas da importância do empreendimento, ao final de sua construção, “o papa Sisto IV concedeu indulgência plenária a todos os cristãos que ali falecessem a serviço da Coroa portuguesa”, escreveu Laurentino Gomes no volume 1 de Escravidão (Globo Livros). Ou seja, caso o fiel trabalhador português morresse ali, sua alma passaria reto pelo purgatório e repousaria no paraíso.

Em 1487, Elmina enviava cerca de 225 kg de ouro por ano a Lisboa (uns bons R$ 67 milhões em valores atuais). Em 1500, segundo Meredith, o volume chegou a 700 kg, “uma parcela significativa da oferta mundial”.

Era tanto ouro que os portugueses começaram a participar de outro comércio na África Ocidental, um em que eles já vinham experimentando nas décadas anteriores e em que viriam a ser especialistas: o tráfico de seres humanos. O clima equatorial não era adequado aos produtos que os portugueses estavam acostumados a vender. Tecidos tinham pouco valor, cavalos eram vítimas fáceis do tripanossomo transmitido pela mosca tsé-tsé e armas, muito requisitadas, eram proibidas de ser vendidas, pois o papa não queria que elas acabassem nas mãos de inimigos islâmicos.

Eles passaram então a “intermediar o comércio de escravos, adquirindo-os nos ‘rios de escravos’ do litoral do Benin e vendendo-os a comerciantes akans em Elmina, para uso dos carregadores no transporte das importações até o interior e como trabalhadores agrícolas. Em 1500, os portugueses enviavam, em média, cerca de quinhentos escravos ao ano para Elmina, em troca de ouro”, explica Meredith.

Portugal entrou de sola no ancestral negócio da escravidão e o transformou em uma indústria global. Elmina testemunhou isso, já que, com o tempo, foi cada vez menos um entreposto comercial de ouro e outros produtos e mais um porto no tráfico atlântico de humanos escravizados.

CHEGA A CONCORRÊNCIA

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Em 1637, no contexto da Guerra Luso-Holandesa, em que as duas potências se engalfinharam em tretas que iam de Macau ao Recife, os batavos tomaram o forte ganês. Cinco anos mais tarde, a Costa do Ouro Portuguesa virou Costa do Ouro Holandesa.

Saíram os católicos, chegaram os calvinistas, e a situação não mudou. Elmina continuou sendo um importante porto de escravos, agora servindo o Império Holandês.

O tráfico definhou no século 19, cedendo à pressão do Reino Unido, novo soberano dos mares e que ao longo das décadas assumiu o controle desses territórios até efetivá-los, em 1874, como colônia britânica.

Em 1957, a Costa do Ouro e Togolândia se reuniram em um novo território, Gana, como a primeira colônia da África Ocidental a conquistar a independência. O passado escravagista e as invasões de portugueses, holandeses, britânicos (e também de suecos, dinamarqueses e alemães) deixaram uma profunda marca no país, que transformou Elmina em um museu nacional.

Em 1979, a Unesco inscreveu o castelo e outras construções históricas da região em sua lista de patrimônios culturais. São Jorge da Mina é o mais emblemático, mas há uma série de obras do tipo no litoral ganês. Mais especificamente, segundo a descrição, “três castelos, 15 fortes, quatro fortes parcialmente em ruínas, quatro ruínas com estruturas visíveis e dois lugares com traços de antigas fortificações”.

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Segue o texto da Unesco: “Os castelos e fortes constituíram por mais de quatro séculos uma espécie de ‘rua comercial’ da África Ocidental para a qual comerciantes das nações marítimas mais importantes da Europa vinham trocar suas mercadorias pelas de comerciantes africanos, alguns vindos de muito longe no interior”.

A descrição enaltece, com tristeza, a função original do castelo e aquilo em que ele se transformou, “um monumento não apenas aos males do comércio de escravos, mas também a quase quatro séculos de comércio afro-europeu pré-colonial com base na igualdade, e não na base colonial da desigualdade”. Elmina e os outros fortes “são um símbolo significativo e emotivo dos encontros europeu-africanos e do ponto de partida da diáspora africana”.

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Além de turistas querendo conhecer suas origens (ou apenas ver de perto um dos capítulos mais horrendos da história da humanidade), o castelo serve de ponto de encontro de militantes para relembrar o terror do tráfico atlântico, que por 350 anos espalhou 12 milhões de africanos pelas Américas, deixando um rastro de sangue no caminho: entre 10 e 12 milhões de mortos no continente africano, 1 a 2 milhões de mortos na travessia oceânica e 3 a 4 milhões de mortos no primeiro ano nas lavouras e cidades do Novo Mundo, segundo o levantamento de Matthew White, especialista em grandes atrocidades.

Jamais esquecer o que houve é essencial para a história e para a construção do futuro. E é também uma bela ajuda econômica. Em Gana, O Festival Full Circle, que muda a narrativa sobre a África, jogando luz mais às riquezas e à diversidade do que aos clichês de guerra, pobreza e caos, estimulou, como vimos, americanos a descobrirem o país. O estímulo à economia foi estimado em US$ 1,9 bilhão. Ainda é pouco.

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Nas bucólicas paisagens do sul da Austrália, um museu dedicado ao cocô http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/08/15/nas-bucolicas-paisagens-do-sul-da-australia-um-museu-dedicado-ao-coco/ http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/08/15/nas-bucolicas-paisagens-do-sul-da-australia-um-museu-dedicado-ao-coco/#respond Sun, 15 Aug 2021 07:00:25 +0000 http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/?p=2045

(Crédito: Reprodução/Instagram)

42º44’S, 147º26’L
Pooseum
Richmond, Tasmânia, Austrália

Seu cocô tem história. Se ficar bem preservado, então, poderá contar às pessoas do futuro sua vida em detalhes. Praticamente um diário gerado em suas entranhas.

É difícil sair da quinta série, eu sei. Mas o assunto é relevante. Desde o século 19 cientistas estudam coprólitos – junção dos termos gregos para fezes (kopros) e pedra (litos). Ou seja, cocôs fossilizados, formados, em geral, em ambientes áridos.

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Se bem preservado, o fóssil pode revelar muito sobre um animal. A dieta é o mais óbvio, mas dá para descobrir o ambiente em que vivia, posição na cadeia alimentar, se tinha doenças… Coprólitos contêm cálcio, fosfato e matéria orgânica, e além disso podem ter outros fósseis (tipo ovos de parasitas), traços de microrganismos, pólen, fibras, fragmentos de ossos e proteínas humanas – o que, no caso de um coprólito de outro ser humano, indica canibalismo.

Eles ajudam a reescrever a história do planeta. Há registros que datam de 540 milhões de anos atrás, quando a Terra vivia o Período Cambriano. Ou seja, desde que a vida explodiu no planeta, os dejetos que os primeiros seres vivos deixaram por aí ajudaram a explicar como tudo começou.

Em 2008, cientistas descobriram coprólitos humanos na América do Norte. A análise de DNA do cocô de 14,3 mil anos indicou que aquelas pessoas tinham origem asiática, o que enterrou de vez uma teoria que dizia que os primeiros humanos do continente tivessem vindo da Europa ou da África.

Alguns até viraram peças de museu. No Reino Unido há um coprólito humano tão grande que tem nome. O Lloyd Banks é um tolete de 23 cm, cujo autor alimentava-se de carne e pão e sofria de uma infecção intestinal pesada. Ele está exposto no Centro Viking Jorvik, em York.

Falando em museu, na Austrália existe um dedicado ao assunto. Karin Koch, a idealizadora, conta que se interessou pelo assunto quando soube de uma pequena lagarta que tem o olímpico talento de ejetar suas fezes a uma distância de 1,5 m (o equivalente a um homem ter uma bazuca anal que atinge 70 m de distância).

(Rerpodução/Instagram)

O Pooseum (trocadilho em inglês para “museu do cocô”) trata do tema sem tabu e jogando luz às diversas formas como os animais lidam com isso. O fator nojeira+piadas infames que os humanos reservam ao assunto apenas enaltece a riqueza biológica e o arsenal de curiosidades que ele proporciona.

Fezes são um recurso valioso. Podem servir para abrigar ovos, marcar território, achar alimentos e parceiros sexuais. Cocô é brinquedo, é arma, é comida. “Alguns animais iludem seus predadores se camuflando como cocô!”, diz Koch em seu site.

Filhotes de coalas comem as fezes da mãe, morcegos são asseados, corujas usam dejetos de outros animais para capturar presas. Esses são os tipos de informações oferecidas aos visitantes, que podem ver de perto os cocozinhos cúbicos dos wombats (marsupial nativo da Austrália), um temível excremento de leão, marcado por restos de pelos e ossos, e até o cocozão fossilizado de um dinossauro.

O museu fica em Richmond, uma agradável cidade da Tasmânia que preserva parte da história da colonização da ilha. Há um casario dos anos 1820, a cadeia mais antiga intacta da Austrália e a igreja católica mais velha ainda de pé no país – ambas da mesma época, décadas de 20 e 30 do século retrasado. Richmond é também a cidade base de uma importante região vinícola australiana, a do Vale de Coal River.

 

(iStock)

(iStock)

Pode ser divertido ir ao museu depois de visitar uma vinícola. Piadas de quinta série descem melhor depois da segunda taça.

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Marcadas por descaso e guerra, ruínas olímpicas de Sarajevo querem renascer http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/08/08/marcadas-por-descaso-e-guerra-ruinas-olimpicas-de-sarajevo-querem-renascer/ http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/08/08/marcadas-por-descaso-e-guerra-ruinas-olimpicas-de-sarajevo-querem-renascer/#respond Sun, 08 Aug 2021 07:00:08 +0000 http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/?p=2021

(Crédito: Instagram/@rolandblanc)

43º50’N, 18º26’L
Pista abandonada de bobsled
Monte Trebević, Sarajevo, Bósnia-Herzegóvina

Passada a festa, vem a ressaca. Com o encerramento dos Jogos Olímpicos, hora de lembrar o lado podre dessa máquina bilionária que constrói sonhos, forja heróis e “desperta o melhor de nós”, esparramados no sofá de madrugada. Afinal, as Olimpíadas são, também, uma usina de elefantes brancos. Uma fábrica de edifícios e estruturas que têm a peculiar marca registrada de brilhar para o mundo por duas semanas e depois, em poucos anos, parecer um cenário apocalíptico que está ali há eras.

Os espaços largados da Rio 2016, ainda bem longe da promessa de legado de virarem escolas e outras instalações úteis à sociedade, são só mais alguns exemplos em uma longa lista de ruínas olímpicas. Toda Olimpíada tem show de abertura, mascote, pictogramas, maratona no último dia. Tem também doping, corrupção e arenas, pistas, quadras e piscinas abandonadas. É uma antitradição.

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Berlim 1936, Montreal 1976, Moscou 1980, Atenas 2004, Pequim 2008 são alguns dos Jogos que deixaram ruínas impressionantes. O problema se repete nas Olimpíadas de Inverno. A vila dos atletas de Turim 2006 até teve um legado nobre, mas não por iniciativa de qualquer autoridade. Dez anos depois, em 2016, totalmente abandonada, ela foi ocupada por refugiados e imigrantes, no auge da crise migratória do Mediterrâneo.

SARAJEVO NÃO É BRINCADEIRA

De todas essas cidades olímpicas, a que ganhou as ruínas mais improváveis, a ponto de virarem destinos turísticos populares, é Sarajevo. Sede das Olimpíadas de Inverno de 1984, a capital da Bósnia-Herzegóvina, que à época integrava a Iugoslávia, recebeu 1.272 atletas de 49 nações. Foi a segunda Olimpíada consecutiva realizada no lado de lá da Cortina de Ferro, após os Jogos de Verão de Moscou, quatro anos antes. Mas, dessa vez, não houve boicote dos Estados Unidos e sua turma (inclusive, americanos, alemães ocidentais, canadenses e italianos ganharam uns ouros).

O que fez o parque olímpico tristemente especial veio depois. Em 1992, em meio ao colapso da Iugoslávia, a minoria sérvia não aceitou a independência bósnia e o país, habitado por muçulmanos (bosniaks), católicos (bósnio-croatas) e ortodoxos (bósnio-sérvios), mergulhou em uma horrenda guerra que marcou a década.

As belas montanhas de Sarajevo, verdes no verão e brancas no inverno, viveram novas realidades. As pistas das Olimpíadas se transformaram em centro de tiro de snipers sérvios nos anos 1990. A mais emblemática delas é a de bobsled, no Monte Trebević, que já foi considerada a mais íngreme e veloz do mundo.

(Crédito: iStock)

A arena Zetra, construída para os Jogos e sede das competições de hóquei no gelo e patinação artística, além da cerimônia de encerramento, foi bombardeada e incendiada. Seu interior virou enfermaria e necrotério. A madeira dos assentos, em uma mórbida versão da sustentabilidade propagandeada em Olimpíadas futuras, foi reutilizada para fazer caixões. A área externa virou cemitério – um dos tantos que se vê hoje na cidade, resultado do Cerco de Sarajevo, o mais longo cerco a uma capital nos tempos modernos: foram quase quatro anos, com 14 mil mortes.

Terminado o conflito, a criação de um novo e ultraburocrático país, formado por duas entidades políticas independentes, com um alto representante da comunidade internacional e uma presidência tripartite rotativa, abandonou de vez a lembrança dos Jogos. Especialmente porque ela é um símbolo poderoso da glória dos tempos iugoslavos e socialistas, algo que em muitos setores da sociedade dos países do bloco é visto como um trauma.

(Crédito: iStock)

Destruída e abandonada, a pista atraiu grafiteiros e, mais tarde, ciclistas que a aproveitaram para praticar downhill. Desde a década passada há planos de revitalização da área, ainda cercada de minas terrestres. Mas nada foi feito. Hoje, ela é a quarta atração turística mais popular da cidade no Trip Advisor.

Engana-se o preguiçoso que pensou “é porque não tem nada para fazer lá”. Sarajevo pulsa história, esteve no centro de acontecimentos que mudaram o mundo há 100 anos (se você escutou Franz Ferdinand em algum momento da vida, vai se identificar. Entendedores entenderão).

Espremida entre impérios que viraram história na guerra que começou por causa do atentado em suas ruas, Sarajevo reflete as influências austro-húngaras e otomanas. É um pequeno e bucólico cruzamento de Istambul com Viena nas montanhas, temperado com decadência socialista e buracos de bala nas paredes. Boa comida, povo simpático e próxima das badalações do litoral dálmata, é uma cidade acessível e segura.

(Crédito: iStock)

Apesar do esquecimento, os Jogos não foram varridos para debaixo do tapete da memória pública. Mais de 30 anos depois, ainda havia placas anunciando o evento. Os anéis olímpicos estão em prédios, a logomarca permanece na calçada do bazar otomano. Não fossem os sinais de desgaste e ferrugem nesses símbolos, pareceria uma viagem no tempo, formando um cenário que poderia ser aproveitado em Dark.

A pista de bobsled, coberta de vegetação e grafites, é a principal atração olímpica da cidade, mas há outras, como o pódio de esqui, a pista de salto de esqui, uma escultura dos anéis na montanha, o esqueleto de um hotel.

Em 2014, 31 anos após os Jogos, a rodoviária de Sarajevo ainda mencionava a Olimpíada (foto: Felipe van Deursen)

VIDA NOVA?

Nem tudo é abandono e descaso, no entanto. A arena Zetra foi reconstruída e recebeu eventos culturais e esportivos (além de campanhas de vacinação). As pistas de esqui foram revitalizadas. Desde 2014, atletas de bobsled têm trabalhado no monte Trebević e usado sua pista para treinar. Em 2018, até times de outros países, como a vizinha Eslovênia e até a Turquia, aproveitaram as instalações para se preparar para as Olimpíadas de Pyeongchang.

(Crédito: Instagram/@pedroroquinho)

Espírito olímpico renovado pelas belíssimas imagens e histórias exibidas pelo Serviço Olímpico de Transmissão (OBS), aguardemos agora Pequim 2022 e Paris 2024. E, com elas, provavelmente, os relatos de legado olímpico às traças em Tóquio.

É do jogo. Ou melhor, dos Jogos.

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Com revolução dos bichos na pandemia, praias da Tailândia reabrem http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/08/01/com-praias-revitalizadas-na-pandemia-tailandia-volta-a-receber-turistas/ http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/08/01/com-praias-revitalizadas-na-pandemia-tailandia-volta-a-receber-turistas/#respond Sun, 01 Aug 2021 07:00:12 +0000 http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/?p=1998

Phuket Mai Khao, Tailândia (Crédito: iStock)

8º08’N, 98º17’L
Praia de Mai Khao
Thalang, Phuket, Tailândia

No início da pandemia, o ineditismo da quarentena provocou um certo deslumbramento nervoso com as mudanças que o confinamento e a redução brutal de viagens provocava no planeta. Ar mais limpo, cidades menos barulhentas, a natureza rapidamente tomando o controle.

Logo chegaram as notícias. Cisnes e golfinhos nos até então fétidos canais de Veneza! Elefantes bêbados em uma vila chinesa! Os animais estavam dominando as cidades.

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Só que muitas eram notícias falsas. Ah, se todos os mínions criadores de fake news fossem inofensivos assim.
Certo, houve cenas virais de bichos avistados em lugares aonde que eles não iam havia tempos. Caso das onças-pintadas próximas à sede do Parque Nacional do Iguaçu.

Passado um tempo, os cientistas têm analisado os efeitos reais das quarentenas e lockdowns na natureza, e o resultado é misto. Um time liderado por Amanda Bates, da Universidade Memorial, no Canadá, analisou dados e reportagens de 67 países. Como a gente viu ano passado, eles encontraram muitos relatos de melhora de qualidade do ar, da água e da terra. Menos lixo nas praias, menos animais atropelados, menos ruídos de embarcações (o que é uma uma desgraça, por exemplo, para baleias do Alasca, que no verão são bombardeadas pelo barulho incessante dos navios de cruzeiro).

Por outro lado, durante a pandemia, tem faltado fiscalização. Caça e pesca ilegais cresceram, inclusive no Parque do Iguaçu. A queda do ecoturismo significou menos receita para diversas ações de conservação e alguns ecossistemas se mostraram dependentes dos humanos para ter equilíbrio. Caso do ganso-das-neves. Americanos e canadenses caçam a ave, de maneira legal, para proteger suas plantações. Este ano, segundo uma reportagem da revista The Atlantic, o ganso enfrentou menos espingardas, se empanturrou de folhas e migrou para o Ártico gordo e saudável. Lá devorou a tundra, degradando o habitat de outras espécies. Tais efeitos no ecossistema podem durar anos.

(Crédito: iStock)

A Tailândia é um país que tem experiência pré-pandêmica com presença massiva e ausência total de humanos em certas regiões. A história da baía de Maya, nas Ilhas Phi Phi, é conhecida. Reduzida ao status de você-precisa-fazer-uma-selfie-lá alardeado por blogs de viagem desde que serviu de cenário para Leonardo Di Caprio ficar chapado em A Praia, filme de 2000 do inglês Danny Boyle, o lugar atraiu hordas de turistas ano a ano. O Instagram só piorou as coisas, e o paraíso se viu atolado em lixo, lanchas e likes.

Em 2018, as autoridades do país fecharam a praia. Em apenas dois anos, Maya se tornou o lugar com a maior população de tubarão-de-pontas-negras-do-recife da Tailândia. Já são mais de 100 tubarões dessa espécie, segundo o departamento de parques nacionais do país.

(Crédito: iStock)

Em outras ilhas apinhadas de turistas, a pandemia os substituiu por outros animais. Vacinas podem não transformar humanos em jacarés, mas em algumas ilhas a pandemia substituiu multidões de humanos por outros répteis, as tartarugas. Nas ilhas de Phuket e Koh Samui, a tartaruga-de-pente, ameaçada de extinção, e a tartaruga-de-couro, a maior do mundo e também ameaçada, puderam botar ovos nas praias sem perigo, onde até o ano passado milhões de turistas dominavam a areia.

Petch Manopawity, um diretor da filial tailandesa da ONG Wildlife Conservation Society, disse ao New York Times que a covid mostrou que a sustentabilidade precisa ser abraçada de vez pelo pelo turismo, não só em nichos, mas em toda a indústria. “Ecoturismo” viraria um termo velho, uma vez que todo turismo deveria ser “ecoturismo”.

À medida que Phuket reabre para o turismo, empresas de mergulho querem aproveitar que o mar está para peixe, tubarão, tartaruga e tudo mais e investir em experiências mais ricas. Segundo o site Travel Daily News Asia-Pacific, pontos de mergulho como Hin Deang e Hin Muang estão muito melhores agora do que antes.

A ciência está mostrando que uma intervenção humana menor nem sempre é imediatamente melhor para a natureza. Mas a pandemia deixou claro que muita coisa precisa ser revista. Phuket floresce sem tantas intervenções externas, replicando, de certa forma, sua própria história. Ponto importante das grandes rotas comerciais entre Índia e China em tempos passados, a ilha atraiu navegadores portugueses, franceses, holandeses e ingleses. Sem jamais ter sido colonizada.

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Ametista do Sul, a cidade (e parque temático) dedicada às pedras preciosas http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/07/25/ametista-do-sul-a-cidade-parque-tematico-dedicado-as-pedras-preciosas/ http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/07/25/ametista-do-sul-a-cidade-parque-tematico-dedicado-as-pedras-preciosas/#respond Sun, 25 Jul 2021 07:00:42 +0000 http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/?p=1983

Praça Central de Ametista do Sul (foto: Felipe van Deursen)

27º21’S, 53º10’O
Pirâmide Esotérica
Praça Central, Ametista do Sul, Rio Grande do Sul

Deuses gregos também tinham seus porres, ô se tinham. Para se proteger da loucura, manter a sanidade e evitar um comportamento de torcedor inglês em dias de futebol, Dionísio, o maior especialista no assunto, usava uma ametista. Presente da titânide Reia.

Devido à coloração da pedra, os gregos – e, depois, os romanos, na mais notória “apropriação cultural” do Ocidente – acreditavam que a ametista era um escudo antiembriaguez. Por isso, acredita-se que o nome “ametista” venha do grego antigo para “não intoxicado”.

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Aquele arroxeado era poderoso – e valioso. Na Antiguidade, os mais ricos usavam joias e copos feitos de ametista. Ela esteve em coroas de reis e em anéis de bispos. Durante muitos séculos, a ametista integrava o clube das cinco pedras preciosas, aquelas mais caras e valorizadas: diamante, esmeralda, rubi, safira e ametista. Cinco cores diferentes, cada uma com seus poderes e mitos, um Super Sentai mineralógico, Power Rangers das gemas.

Até que, no século 19, gigantescos depósitos de ametista foram descobertos no Brasil. O valor despencou e a ametista virou a pedra que conhecemos e usamos em pingentes que custam tanto quanto uma pizza.

Os três tipos básicos de rochas existentes na crosta terrestre podem servir para o surgimento de ametistas: ígneas, metamórficas e, em certos casos, sedimentares. Em veios de água na superfície ou em veios hidrotermais. Ou seja, ela não é uma pedra rara, é uma variedade violeta do quartzo.

Uma solução aquosa com átomos de silício evapora e surge o quartzo. Se houver férrico (ferro com número de oxidação +3) e radiação gama, surge a ametista.

Crédito: Instagram/@
vandeursen

Sim, os mesmos raios gama do Hulk, como lembrou o blog “Rosetta Stones”, da Scientific American. Então, pergunta o curioso, a real fonte do poder do herói estaria em seu short roxo?

“AMETISTÁPOLIS”

Hoje, há minas que exploram a pedra em todos os continentes, mas o Brasil segue com as maiores reservas. O Rio Grande do Sul é o maior produtor mundial, e uma pequena cidade no noroeste do estado é a porta-bandeira dessa indústria.

Caçadores e agricultores descobriram as primeiras ametistas por acaso, na década de 1930, na região do médio e alto rio Uruguai. Era a primeira geração desses novos colonizadores, que chegavam a uma terra habitada originalmente pelos kaingang. Muitos eram mineradores e comerciantes alemães, que iniciaram a exploração comercial da ametista.

Batizada de São Gabriel, a localidade ganhou escola, igreja e poços para a mineração. No fim dos anos 1960, chegaram os tratores e retroescavadeiras. Em 1972, no auge da “corrida roxa”, havia mais de cem tratores na região. Depois, túneis substituíram os poços, acabando com o garimpo ao ar livre.

Pirâmide esotérica de Ametista do Sul (foto: Felipe van Deursen)

Vinte anos mais tarde, durante outra febre, a da proliferação de novos municípios após a Constituição de 1988 (25% das cidades brasileiras surgiram entre 1988 e 2000), São Gabriel se emancipou de Planalto e ganhou o nome Ametista do Sul.

Hoje, a cidade de 7 mil habitantes é praticamente um parque temático. Na praça da matriz, uma pirâmide com revestimento de ametista energiza os esotéricos que visitam a cidade. Ali do lado, marcando presença também na fé institucionalizada, a ametista cobre paredes inteiras da igreja matriz.

A maior atração é o Ametista Parque. No complexo, é possível visitar uma mina desativada dentro de uma gaiola customizada na caçamba de um veículo 4×4 e visitar o acervo, que tem um meteorito de 140 kg e uma ametista de 2,5 toneladas. Ainda há um grande restaurante e até um bar dentro da mina. A Mina Beer se autointitula a “primeira microcervejaria subterrânea do mundo”.

Felizmente, das torneiras sai chope, não pedras

A ametista está no brasão, na bandeira, no nome, na base da economia, em quase todas as atrações turísticas e até na pia batismal da igreja matriz de Ametista do Sul, que, não satisfeita, se autodenominou, com justiça, “capital mundial da pedra ametista”.

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Parque de cerejeiras esconde história de Olimpíada cancelada pela guerra http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/07/18/parque-de-cerejeiras-esconde-historia-de-olimpiada-cancelada-pela-guerra/ http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2021/07/18/parque-de-cerejeiras-esconde-historia-de-olimpiada-cancelada-pela-guerra/#respond Sun, 18 Jul 2021 07:00:34 +0000 http://terraavista.blogosfera.uol.com.br/?p=1959 35º37’N, 139º37’L
Parque Kinuta
Setagaya, Tóquio, Japão

Fato curioso, e um tanto inútil, que talvez você não tenha se dado conta: esta é a primeira vez de nossas vidas em que as Olimpíadas não acontecem em um ano bissexto. Como estamos cansados de saber, os Jogos de 2020 foram adiados por causa da pandemia. Desde a primeira edição das Olimpíadas modernas, em 1896, elas sempre aconteceram em anos em que o glorioso mês de fevereiro tem o calendário espichado. A exceção foi 1900, que não foi um ano bissexto.

Coincidentemente, não é a primeira vez que Tóquio enfrenta problemas alheios ao esporte e à organização do evento para sediá-lo na data prevista. Aconteceu antes, em 1940, e um oásis verde na capital é testemunho da primeira aventura olímpica japonesa.

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(Crédito: Instagram @daily_madoka)

Levar os Jogos ao Extremo Oriente era um desejo de seu idealizador, o barão Pierre de Coubertin. Até então, somente cidades da Europa e dos Estados Unidos haviam sediado as Olimpíadas.

Em 1932, após a realização da 10ª Olimpíada de Verão, em Los Angeles, Tóquio se candidatou para ser a primeira sede asiática da história dos Jogos dali a oito anos. O ano de 1940 seria importante para o Japão, pois marcaria, segundo a tradição, o aniversário de 2.600 anos da ascensão do lendário Jimmu, o primeiro imperador, ao trono do país.

Tóquio chegava um tanto atrasada à disputa. Outras nove cidades, entre elas o Rio de Janeiro, já se preparavam para tentar ser a sede da 12ª edição. A favorita era Roma, cujo “colossal estádio de mármore”, segundo a descrição dos concorrentes japoneses, era o cartão de visitas de Benito Mussolini, líder fascista que comandava a Itália desde 1922 e que ansiava por sediar os Jogos.

Em 1935, em um evento do Comitê Olímpico Internacional em Oslo, os delegados japoneses, munidos do argumento do imperador Jimmu, conseguiram convencer Mussolini a apoiar a campanha Tóquio-1940. Na época, os governos de Japão, Itália e Alemanha se aproximavam e começavam a exibir ao mundo suas perigosas aspirações políticas: em 1936, Itália e Alemanha assinaram o protocolo que criou o Eixo. Meses depois, alemães e japoneses fizeram um pacto anticomunista.

As Olimpíadas de 1936 já estavam programadas para Berlim. Com o apoio de Mussolini, Tóquio poderia levar em 1940 e, em retribuição, apoiaria Roma para 1944. Assim, as três potências esfregariam na cara dos inimigos todas as glórias de seus regimes fascistas.

Hitler conseguiu exibir ao mundo seu crescente poder nos Jogos de Berlim, mas precisou engolir Jesse Owens, negro e americano, quatro vezes no topo do pódio. Em agosto daquele ano, Tóquio foi confirmada a sede da Olimpíada seguinte.

Mas aí os planos imperialistas do Japão acabaram atropelando o projeto olímpico. A sutil e poderosa propaganda esportiva foi soterrada pela guerra.

O HORROR

Assim escreveu o príncipe Tokugawa Iesato, presidente do Comitê Olímpico dos Jogos de 1940: “Logo depois que a organização olímpica foi efetivada e seus planos estavam bem avançados, a nação se viu confrontada com o imprevisto incidente sino-japonês. Com o passar dos meses, o incidente ampliou suas esferas e toda a nação se levantou para participar de um conflito de longa duração, mobilizando espírito e recursos. Nenhuma outra decisão, a não ser a antecipação da missão de realizar as Olimpíadas de Tóquio, é concebível nas circunstâncias.”

O “incidente” a que Tokugawa se refere é a Guerra Sino-Japonesa. Em 1937, a China estava mergulhada na zona da guerra civil entre nacionalistas e comunistas quando os japoneses, aproveitando um pretexto qualquer, invadiram o país, dividiram o território conquistado em Estados fantoches e cometeram atrocidades no chamado Estupro de Nanquim, um dos episódios mais grotescos de um século marcado por genocídios e assassinatos em massa.

Civis foram espancados, fuzilados, afogados, queimados. Dezenas de milhares de mulheres foram estupradas e mutiladas. Havia pilhas de cabeças nas ruas. Até os nazistas pediram aos japoneses para que segurassem um pouco a onda.

Em 1938, o Japão anunciou o adiamento dos Jogos. Em 1939, chegou a invadir a Sibéria, mas a União Soviética contra-atacou, e o império voltou sua fúria expansionista para outros lugares da Ásia. Enquanto isso, na Europa, seus aliados alemães tomavam a Polônia, o que marcou o início oficial da Segunda Guerra. Helsinque chegou a ser anunciada como nova sede olímpica, mas, com a invasão soviética à Finlândia, no fim de de 1939, ficou claro que qualquer grande evento na Europa seria inviável no ano seguinte (a não ser que ele envolvesse carnificina e destruição).

Em 1940, antes do ataque a Pearl Harbor e da entrada na guerra, o Japão ainda confiava que seus conflitos regionais logo seriam resolvidos. O comitê organizador dos Jogos publicou um documento em que deixava isso claro.

“Desejando ver, no futuro próximo, a bandeira de cinco anéis flutuando alto no céu claro do Japão (…), os esportistas deste país oferecem alegremente tudo que é possível ao seu alcance”, escreveu Matsuzo Nagai, secretário-geral do comitê. “A crise é uma coisa do momento, enquanto o povo do Japão é invariavelmente inspirado pelo ideal de compreensão internacional, amor mútuo e respeito entre as pessoas.”

Mas os atletas japoneses não tinham como demonstrar isso tudo enquanto os militares japoneses cometiam, na China, alguns dos maiores crimes contra a humanidade de que se tem notícia. A “crise”, segundo Matsuzo, duraria mais alguns traumáticos – e atômicos – anos.

Dessa forma, a 12ª Olimpíada de Verão, bem como a 5ª Olimpíada de Inverno, que seria em Sapporo, no mesmo ano, jamais aconteceu. A 13ª Olimpíada de Verão, em 1944, em Londres (que derrotou Roma na votação) e as Olimpíadas de Inverno, no mesmo ano, em Cortina d’Ampezzo, na Itália, acabaram igualmente canceladas. A programação dos Jogos voltou com a 14ª (a numeração não se alterou) Olimpíada, em Londres, em 1948. Tóquio sediaria a edição de 1964.

A vila olímpica desses Jogos que não aconteceram seria montada no Parque Kinuta, uma área verde inaugurada em 1935, nos preparativos para o aniversário de Jimmu – e das Olimpíadas. Uma história, hoje, quase esquecida.

(Crédito: Instagram @yoko_tokyo_tourguide)

Com 35 hectares, ele é hoje um parque popular entre famílias com crianças. Tem instalações esportivas, um santuário de aves, ponte suspensa e um museu de arte, o Setagaya.

A maior atração é o espetáculo das cerejeiras. Diferentemente de outros lugares da capital, o Kinuta não fica abarrotado de gente para fotografar as flores. Primeiro, porque ele é relativamente grande. Segundo, porque tem mais variedades de cerejeiras, o que aumenta a janela de floração, segundo o site Tokyo Cheapo. Para quem já precisou se acotovelar para conseguir um registro no Parque do Carmo, em São Paulo, sabe que essa é uma baita de uma vantagem.

A 32ª Olimpíada, Tóquio 2020, acontece em um momento delicado da história global, em meio a uma pandemia que ainda não acabou, que impôs estádios e arenas sem público nos Jogos. Ainda assim, a magnitude dos horrores da Segunda Guerra ficou para trás – esta sim, a maior das vantagens.

 

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