O país não reconhecido mais bonito do mundo, Abkházia quer mais turistas
43°00'N, 41°02'L
Antigo Edifício do Conselho dos Ministros
Sokhumi, Sokhumi, Geórgia [Abkházia]*
É uma história que se repete. Vizinhos de diferentes origens convivem em certa harmonia há gerações. Religião, etnia ou convicções políticas pouco importam. Até que a guerra estoura e eles passam a se odiar mortalmente. Nos anos 1990, Ruanda e Bósnia-Herzegóvina mostraram ao mundo seus horrores.
Mas não só lá. Em outro cantinho da Europa, tão esquecido que os desavisados (ou preconceituosos?) acham que lá nem Europa é (ser europeu é chancela de superioridade?), um pequeno país tentou conquistar a independência, mas foi devastado por isso. Se tivesse conseguido, a Abkházia seria mais um dos novos estados independentes que brotaram dos escombros soviéticos.
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Verde e fértil no litoral, com belas praias costeando o Mar Negro, mas sem perder de vista os picos nevados e estações de esqui do interior montanhoso, a Abkházia era um refúgio dos soviéticos mais afortunados. Tudo em um território pouco maior que o Distrito Federal.
Os abecazes, de maioria muçulmana, conviviam com os georgianos, cristãos ortodoxos, por mais de um milênio. Mas os ventos que derrubaram impérios no século 20 sacudiram esse equilíbrio. "No século 19, os abecazes fizeram muito mais oposição aos russos do que os georgianos", explica a autora norueguesa Erika Fatland em The Border, livro que percorre as fronteiras da Rússia, da Coreia do Norte à Noruega (não há edição brasileira, mas outro livro dela, Sovietistão, foi traduzido).
O Império Russo anexou a Geórgia no fim do século 18, mas a Abkházia ficou boa parte do 19 no meio do cabo de guerra dos russos com o império vizinho rival, o Otomano. Os abecazes se aliaram aos circassianos, povo do outro lado das montanhas, no norte do Cáucaso. Em 1864, os russos eliminaram a resistência na região e puniram circassianos e abecazes.
Centenas de milhares de pessoas foram espremidas em barcos lotados e despachadas para o território otomano. Outras milhares tiveram que fugir. A costa da Abkházia ficou vazia. Aqueles que insistiam em lutar acabaram deportados, até que a Rússia baniu de vez os abecazes de viverem na costa e nas maiores cidades. Georgianos, armênios e gregos acabaram ocupando as vilas.
Nos anos 1930, sob a sombra de Stálin, que, além de tudo, era georgiano, tudo ficou ainda pior. A Abkházia fazia parte da República Socialista Soviética da Geórgia (que por sua vez era uma das integrantes da URSS). Lavrentiy Beria, fiel aliado de Stálin, assumiu o comando do Partido Comunista da União Soviética no Cáucaso do Sul. Pertencente a uma minoria georgiana da Abhkázia, ele estimulou a migração em massa de georgianos. Em 1939, somente 17% da população da Abkházia era composta de abecazes, enquanto 45% eram georgianos.
ANOS 1990
Cinquenta anos se passaram, o socialismo soviético dava seus últimos suspiros e, em 1989, milhares de abecazes assinaram uma declaração que pedia a fundação de uma república soviética independente para o país. A Geórgia, é claro, não gostou nem um pouco, o clima esquentou, mas em abril de 1990 o exército soviético tomou as ruas de Tbilisi, capital georgiana, e acalmou as coisas – do jeito que exércitos desastrados fazem: aumentando a tensão e matando e ferindo cidadãos.
Em abril de 1991, a Geórgia declarou independência, mas a Abkházia tentou permanecer fiel a Moscou. Em julho do ano seguinte, enquanto os atletas das ex-repúblicas soviéticas competiam em Barcelona sob o nome "Comunidade dos Estados Independentes", a Abkházia tentou buscar a sua própria independência. Um mês depois, tanques georgianos tomaram as ruas de Sokhumi, a capital abecaze (chamada por eles de Sukhum). Foi uma guerra suja, protagonizada por um jovem exército constituído de prisioneiros recém-libertados, que cometeram estupros e pilhagem.
Metade da costa do Mar Negro da Geórgia fica na Abkházia. Cerca de 270 mil georgianos viviam no país. Não era um lugar qualquer, a Geórgia tinha muito a perder. A guerra matou 10 mil pessoas e praticamente todos os georgianos tiveram que fugir quando as forças abecazes tomaram o controle de Sukhumi. Os inimigos assinaram um cessar-fogo em 1993.
Em 2008, a Geórgia tentou reaver o controle de outra região problemática, a Ossétia do Sul, mas a Rússia respondeu com vigor. Na sequência, reconheceu a independência da Abkházia, declarada em 1999. Hoje, apenas ela e outros quatro países, entre eles a Venezuela, reconhecem a Abkházia como um país soberano. Para a Geórgia e seus aliados em Washington, trata-se de um território ocupado pela Rússia. Com suas bases militares, Moscou exerce o controle de fato da Abkházia.
Sokhumi, cidade que nasceu colônia grega e cresceu na era de ouro da Geórgia (século 11) mantém sua vocação de destino de veraneio, com praias, clima ameno e belos jardins à beira-mar. Mas, bastante afetada pela guerra e distanciada do mundo há quase 30 anos, ela foi coberta por um manto de decadência.
Desde o reconhecimento russo, mais turistas chegam a cidade, mas ainda longe do potencial e dos tempos soviéticos. Este ano, o governo aguarda um fluxo maior de visitantes russos. Como boa parte das fronteiras permanecerá fechada por causa da pandemia, a Abkházia aparece como uma opção viável.
Em 2017, o prédio do Conselho de Ministros, abandonado, servia de ponto de encontro para jovens em noites quentes, segundo o jornal britânico The Guardian. Típico colosso soviético instalado no centro da cidade, ele foi um dos palcos da guerra e, desde então, segue abandonado. É um testemunho decrépito e monumental, arquitetura brutalista arruinada, estranho troféu que lembra a vitória abecaze e a expulsão dos georgianos.
Poderia ser bem diferente. Diz um dos entrevistados do livro de Fatland: "Se não fosse a guerra, a Abkházia podia ser como Mônaco hoje".
* Rússia, Nicarágua, Venezuela, Nauru e Síria reconhecem a Abkházia como um país independente. Para a maioria dos países, ela integra a Geórgia. Na prática, a Geórgia não exerce nenhum poder sobre o território, que tem governo próprio – controlado por Moscou, segundo a maior parte da comunidade internacional.
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