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Portão do Inferno: estranho símbolo de um dos países mais fechados do mundo

Felipe van Deursen

16/11/2019 04h00

Portão do inferno no deserto do Turcomenistão (Crédito: Getty Images)

40º11'N, 58º24'L
Portão do Inferno
Derweze, Ahal, Turcomenistão

Em julho deste ano, um rumor pairou sobre os habitantes do Turcomenistão. Estaria seu presidente morto? Ele não apareceu na mídia local por semanas, e grupos opositores levantavam a possibilidade de que sua saúde caminhava para o buraco. Indagações que só um país ultra fechado pode oferecer a você.

Não, senhoras, o soberano Gurbanguly Berdymukhammedov estava vivo e passava bem. A prova era um vídeo que o mostrava fazendo diversas atividades. Nesse tempo longe dos holofotes, ele estava deveras ocupado, pois é um homem de muitos talentos. Pegou peso na academia, jogou boliche, compôs músicas e fez rally no Portão do Inferno.

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Portão do Inferno é o apelido fofo da cratera de gás de Darvaza. Trata-se de um campo de gás natural que colapsou sobre uma caverna subterrânea. Para evitar que o metano se espalhasse, geólogos atearam fogo no local.

Os portões do Inferno (Crédito: Getty Images)

A história mais repetida diz que a terra cedeu quando os soviéticos iniciaram a exploração de gás natural na região, em 1971. Mas geólogos locais dizem que a cratera se formou nos anos 60 e que o forno foi ligado somente nos 80. Não se sabe ao certo.

O Turcomenistão é uma ex-república soviética às margens do Mar Cáspio. Apesar das ligações políticas com Moscou no passado, é um país etnicamente mais próximo da Turquia (como o nome sugere). Tribos turcas e grupos autóctones formaram o povo turcomeno por volta do século 11.

Mais tarde, o território conheceu como poucos a fúria mongol de Gêngis Khan. Entre os séculos 15 e 18, as tribos do sul viraram domínio persa e as do norte se tornaram vassalas de canatos do vizinho Uzbequistão. Canatos são entidades políticas típicas da Ásia Central. Muitos derivavam do Império Mongol.

Os russos chegaram em 1869 e em 1924 o país foi anexado à União Soviética. Em 1991, com a independência, Saparmyrat Niyazov foi eleito presidente. Ele ficou no poder até morrer, em 2006, e foi substituído pelo ministro da Saúde (e seu próprio dentista): Berdymukhammedov.

Ao longo desses 13 anos, Berdymukhammedov estimulou um excêntrico e previsível culto à própria personalidade. Compartilha vídeos em que demonstra todo seu talento musical, dirigindo carros possantes ou participando de competições de força física.

Gosta muito de cavalgar em público. Gosta tanto que tem até um trono com dois cavalos em seu gabinete. Faz sentido, dada a histórica ligação desse povo com o animal. Um cavalo da raça akhal-teke ocupa o centro do brasão de armas do Turcomenistão.

Por causa de tamanha excentricidade, Berdymukhammedov às vezes aparece na mídia ocidental, quase sempre para ser ridicularizado como um bufão polímata. Mas não se engane, essa história tem um lado nada divertido.

Se o presidente é capaz de sumir por semanas, imagine os cidadãos comuns, detidos pelo governo. Ser gay é crime. Muitas ONGs de direitos humanos observam atentamente o país. O Turcomenistão é um território desértico com uma população menor que a da cidade do Rio de Janeiro, em uma área quase do tamanho da Bahia.

Pouca gente, muito espaço, cenário fértil para um governo repressivo. O Freedom in the World, que mede liberdades civis, deu nota 2 ao país. Consegue ser menor que a nota da Coreia do Norte, que teve 3. Liberdade de imprensa é tão rara quanto açúcar, ovos, pão ou dinheiro vivo. O desemprego está na casa dos 60%, mas os números oficiais falam em 3%.

Ninguém esperava que a cratera queimasse por tanto tempo. Lá se vão pelo menos três décadas e o Portão do Inferno, com seus 69 m de diâmetro e 30 m de profundidade, continua ardendo. Uma demonstração nada sutil da enormidade das reservas de gás natural do país.

O governo espera que o local se torne uma atração turística internacional. O Turcomenistão tem ruínas de cidades históricas dos impérios Aquemênida e Parta, patrimônios da Unesco, mas privilegia um pitoresco buraco em chamas. Se seguir os passos de Chernobyl, será mais um projeto soviético que não deu certo a ser transformado em ponto turístico.

Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.