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Grande Pirâmide dos EUA: uma saga maluca de erros, dívidas e megalomania

Felipe van Deursen

01/04/2020 04h00

Pyramid Arena (Crédito: Getty Images)

35º09'N, 90º03'O
Pirâmide de Memphis
Memphis, Tennessee, Estados Unidos

Segundo a lenda, e historiadores antigos como Heródoto, o faraó Menes fundou a cidade de Mênfis, capital do Antigo Egito no período conhecido como Império Antigo (2600 a.C.-2100 a.C.). Mênfis foi abandonada uns 2 mil anos depois, por volta de 600 a.C., e, hoje, ela encanta mentes pelo mundo.

Os Estados Unidos resolveram homenageá-la dando seu nome não a um, mas a cinco municípios em diferentes estados. O mais famoso deles, no Tennessee, é um colosso cultural americano e tem a sua própria linhagem faraônica, com B.B. King, Jerry Lee Lewis, Otis Redding, Elvis Presley e Aretha Franklin (única que de fato nasceu lá).

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Em 1991, a Memphis com "ph" ganhou uma nababesca pirâmide de vidro, cuja maior semelhança com as antigas pirâmides egípcias, pelo menos no imaginário popular, era a impressão de que ela tinha uma maldição. Memphis não tinha um faraó Menes, mas agora tinha um enorme, reluzente e piramidal meme.

Desde o século 19 Memphis desejava aumentar a conexão com sua xará ancestral. Em 1897, a cidade (e o condado do qual ela faz parte, Shelby) participou de uma exposição em Nashville com a sua própria Pirâmide de Quéops, em versão de madeira e 30 m de altura (mais de quatro vezes menor do que a original egípcia).

Na década de 1950, Mark Hartz, um artista da região, quis recriar não só Quéops como também as irmãs menores, Quéfren e Miquerinos, às margens do rio Mississippi. O projeto ficou no papel por mais de 30 anos, até que Jon, filho de Mark, decidiu retomá-lo.

Projeto da Grande Pirâmide Americana

O plano, alterado para apenas uma pirâmide, atraiu o empreendedor tenessiano John Tigrett, figurão local, amigo de Isaac Hayes, consultor de Al Gore e que ficou muito rico graças, em boa parte, a isto aqui:

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Inicialmente, o plano de Tigrett era oferecer múltiplas experiências de entretenimento, com arena para shows, estação de rádio, restaurantes e plataformas com vista panorâmica. Além disso tudo, estávamos na virada dos anos 1980 para os 90, então o complexo teria também uma unidade do Hard Rock Café, é claro. Não se tratava apenas de uma modinha. O Hard Rock foi fundado pelo próprio filho de John, Isaac Tigrett.

O time de notáveis ficou completo com a chegada de Sidney Shlenker para capitanear a construção da pirâmide e desenvolver as suas atrações turísticas. Shlenker era então dono de parte do time de basquete Denver Nuggets e de diversas empresas de entretenimento. Era o homem certo para dar a Memphis o que a cidade queria: o turismo, uma franquia esportiva respeitada, uma arena de nível internacional.

Em 1989, um grande evento marcou o início das obras. Shlenker acreditava que algo tão monumental deveria ser grandioso desde o primeiro instante, dessa forma os financiadores viriam correndo. Na "grande escavação", como foi chamada aquela noite especial, uma enorme pá iluminada desceu de um helicóptero e a silhueta da futura pirâmide surgiu, toda pomposa e tecnológica em laser, no céu de Memphis.

Em vez de chamar um punhado de políticos para simular o trabalho braçal ou simplesmente esticar uma fita vermelha para o prefeito cortar, Shlenker torrou nessa pataquada mais de US$ 900 mil (em valores atualizados). De doer no bolso.

Toda a concepção da obra foi marcada por baques financeiros e decisões furadas dignos de estádio de Copa. Em 1991, Shlenker, desesperado por financiamento, caiu no conto de um golpista de Las Vegas. Os US$ 80 milhões prometidos nunca chegaram.

Em 1989, Shlenker comemorava uma grande venda tomando Don Perignon 1982 em uma caneca do Donald. Menos de dois anos depois, ele pagou o pato. Sua companhia faliu, devendo mais de US$ 16 milhões na praça.

Ainda assim, as obras terminaram e a pirâmide foi inaugurada, em novembro de 1991. Os problemas surgiram de cara, e eram toscos e simplórios, diametralmente opostos à opulência da estrutura. Os banheiros entupiram e começaram a inundar a arena. Os funcionários tiveram que isolar o perímetro para proteger instalações elétricas sob o palco.

Tudo isso é gripezinha, resfriadinho, perto de covid-19 quando os empreendedores perceberam algo que arquitetos, engenheiros, bons alunos de física e frequentadores de casas de show sabem: não se veem muitas casas de espetáculos piramidais por aí devido a uma questão acústica. O som é horrível.

A piada que rolava, segundo o site City Lab, é que você levava dois shows pelo preço de um: ouvia o original e, em seguida, seu eco reverberando do teto.

Ainda assim, a Great American Pyramid caiu nas graças do público. Pelo menos por algum tempo.

Pyramid Arena (Crédito: Getty Images)

Mera anedota não fosse toda a sua concepção um causo maluco: em apenas dois anos ela deixou de ser a maior pirâmide americana. Com 5 m a mais, o título passou à Luxor, que fica em Las Vegas, evidentemente.

MALDIÇÃO DE FARAÓ?

Novo milênio, novo revés. A pirâmide, concebida também, teoricamente, para receber jogos de alguma grande liga americana, finalmente teve a oportunidade de mostrar serviço quando o Grizzlies se mudou de Vancouver, no Canadá, para o Tennessee.

Uma diferença das ligas dos EUA é que os times nem sempre fincam raízes e são meio ciganos, mudando-se daqui para lá conforme os interesses de seus donos mudam. Uma semelhança é que às vezes as grandes obras não vão ao encontro das exigências de determinado esporte, liga ou time. E aí uma cidade pode se ver com novas arenas de um lado e estádios abandonados de outro.

Com a chegada do Grizzlies a Memphis, ficou claro que a pirâmide não servia como um estádio da NBA. Fazer as obras de readequação para se encaixar nos padrões esportivos, estruturais e televisivos do maior basquete do mundo seria caro demais. Em vez disso, a cidade ganhou um novo estádio de US$ 250 milhões em 2004. Shows e outros eventos também migraram para ele e a pirâmide ficou esvaziada.

A estátua de fibra de vidro do faraó Ramsés II, que ficava na entrada do complexo, foi realocada. É claro que tinha que ter uma estátua de faraó na porta da pirâmide, mas pelo menos acertaram o soberano. A estátua original de Ramsés II  foi descoberta próxima da antiga Mênfis.

Por 11 anos, a pirâmide permaneceu fechada, a não ser por um outro treinamento de bombeiros. Houve propostas para transformar o elefante branco em um parque temático, um cassino ou, é óbvio, um shopping.

Até que a Bass Pro, loja especializada em itens de peça, caça e atividades ao ar livre em geral, demonstrou interesse. Após anos de negociações e anos de mais obras, a pirâmide ganhou uma megaloja da marca, em 2015.

O complexo tem plataformas de arco-e-flecha e tiro, pistas de boliche, aquário, um elevador panorâmico altíssimo e até quartos de hotel. Lá em cima, na ponta piramidal, uma área com vista para a cidade, com bar e restaurante. Era uma das propostas do projeto original.

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A região do entorno também pode ganhar um novo capítulo. O distrito de Pinch, o mais antigo de Memphis, foi por muito tempo a região de imigrantes recém-chegados, como judeus do Leste Europeu, italianos e irlandeses fugindo da Grande Fome da Irlanda, nos anos 1840.

Cem anos depois, seus descendentes se mudaram para bairros mais distantes, com o início de um projeto de gentrificação na área. Mas Pinch acabou abandonado, e nos últimos 50 anos diversos planos de revitalizá-lo surgiram. A pirâmide foi mais um deles. Não precisa dizer que não deu certo.

Em 2019, uma firma de Nova York comprou algumas propriedades na área com o plano de construir lojas, hotel, escritórios e apartamentos de luxo. Se vingar, o entorno da pirâmide deixará de ser um mar de estacionamentos, galpões, imóveis vazios e avenidas inóspitas para o pedestre.

Em todo caso, mesmo que o novo projeto não vá para frente, de um jeito bastante torto, a Grande Pirâmide Americana parece agora estar cumprindo seu objetivo. O colosso de vidro e aço inoxidável – cujo reflexo de luz solar inferniza trabalhadores dos prédios dos arredores a ponto de alguns terem cortinas automáticas programadas para evitá-los – enfim se tornou um polo de entretenimento.

* * *

A não ser que a maldição volte a rondá-la. Reza a lenda que as coisas desandaram quando removeram, do topo da pirâmide, uma caixa de metal que tinha dentro dela uma caixa de madeira, que por sua vez tinha uma caixinha de veludo preto. Nessa caixa, havia uma caveira de cristal do tamanho de um punho, recortes de revistas e um fax para Isaac Tigrett.

A caixa era uma ação promocional, uma cápsula do tempo. O fundador do Hard Rock era, à época, fã de New Age e discípulo de Sri Prem Baba, ou Janderson Fernandes de Oliveira, o guru espiritual brasileiro que em 2018 foi acusado de abuso sexual.

Se as autoridades de Memphis não tivessem levado a sério os rumores de que homens de preto teriam instalado, na calada da noite, uma misteriosa caixa com uma caveira no topo da pirâmide, a 98 m de altura sobre o Mississippi, a saga da construção teria sido diferente. A caveira seria, segundo a lenda, a bateria vital da pirâmide.

Fique agora com esta pérola de 1990, o vídeo promocional da Grande Pirâmide Americana, que apresenta aos potenciais investidores as atrações que ela teria (são tantas que algumas eu nem citei no texto):

 

Sobre o autor

Felipe van Deursen é jornalista de história. Autor do livro 3 Mil Anos de Guerra (Ed. Abril), foi editor da Superinteressante e da Mundo Estranho e colunista da Cosmopolitan. Gosta de batata, de estudar e de viajar.

Sobre o blog

Os lugares mais curiosos e surpreendentes do mundo e a história (nem sempre tão bela nem tão ensolarada) que cada um deles guarda. Um blog para quem gosta de saber onde está pisando.