A ilha grega que é um retrato da solidão em tempos de pandemia
37º15'N, 21º00'L
Stamfani
Zakynthos, Ilhas Jônicas, Grécia
Para aqueles que andam se sentindo só nesses tempos de necessário isolamento social imposto pelo coronavírus, a história desta ilha grega é mais do que um suspiro melancólico para quem poderia – e não pode mais – viajar durante a quarentena. É um exemplo físico, embora não tão vivo, de solidão extrema.
Stamfani é uma das tantas ilhas gregas (dependendo da contagem, o número chega a 6 mil). Tão isolada e alheia ao mundo exterior que não aparece nem mesmo nos melhores e mais parrudos guias de viagem dedicados à Grécia. Pertence a Zakynthos, uma das primeiras regiões do país atingidas pela pandemia de covid-19 e uma das primeiras e tomar medidas de isolamento social.
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No passado medieval, Stamfani teve sua dose de agito. Em 1241, a ilha ganhou um mosteiro que também fazia as vezes de forte. A construção protegeu os monges contra ataques de piratas que infestavam o Mar Jônico. Mas ela não fazia milagre. No século 17, um devastador arrastão de bandidos do mar fez com que o corpo do cidadão mais ilustre da ilha tivesse que ser transportado para um local mais seguro.
Dionísio era um jovem de família abastada de origem veneziana. Abriu mão do status social para se dedicar aos estudos teológicos, peregrinou para a Terra Santa, tornou-se arcebispo de Zakynthos e gozou de grande popularidade entre os fiéis.
Retornou à calmaria do mosteiro de Stamfani, onde morreu, já passado dos 75 anos, em 1624. Seus santos restos ali ficaram até a chegada dos piratas.
Hoje, eles estão na igreja erguida em sua devoção, um dos pontos turísticos da cidade de Zakynthos. Além dos afrescos impressionantes, é possível ver até mesmo as vestes de São Dionísio, um dos mais queridos da Igreja Ortodoxa Grega.
Zakynthos também é conhecida pelo nome em italiano Zante, pois a ilha já passou pelo domínio de napolitanos e venezianos, além de ter sido invadida pela Itália moderna. É um dos destinos mais populares da Grécia, graças ao azul estupendo do mar, praias de areia e aeroporto com voos internacionais durante o verão.
Zakynthos tem voo direto para o Reino Unido e a Alemanha, é povoada, é relativamente grande (pouco menor que a Ilha de Santa Catarina). Já Stamfani é o oposto. A ilha, cerca de 44 km ao sul, só é acessível com barcos particulares e previamente autorizados e, até pouco tempo atrás, tinha somente um habitante.
Padre Gregório viveu 38 anos, a maioria deles sozinho, no mosteiro de Stamfani. Seguindo os passos de São Dionísio, esse monge ortodoxo grego chegou à ilha em 1976, no início da redemocratização do país, após sete anos de ditadura militar.
Até 1985, as únicas companhias de Gregório eram um faroleiro e um pescador que trazia mantimentos de Zakynthos a cada quinzena. Naquele ano, o farol foi automatizado e o monge perdeu seu companheiro.
A vida seguiu assim, ditada pelos passos das cabras e galinhas de Gregório, em um compasso que poucos humanos que viveram no século passado sabiam o que era. Em 1997, 12 anos de meditação, sol do Jônico, pouca sombra, muita vegetação rasteira e só algumas raras visitas de turistas depois, o jogo mudou. Como que para tirar o atraso e sacudir a letargia cotidiana, um terremoto de 6,6 graus, com epicentro no arquipélago, causou sérios danos ao mosteiro. Pela primeira vez, Gregório precisou deixar sua pequena ilha por uns dias.
O prédio teve que passar por reparos e não despencar de vez. Ele segue de pé, mas em estado precário.
Gregório voltou e permaneceu na ilha outros 17 anos, vivendo à base de hortaliças, silêncio e leite e queijo de cabra. Em 2014, com a saúde fragilizada, mudou-se para a sua vila natal, Agalas, no sul de Zakynthos. Morreu três anos depois.
Desde então, Stamfani não sabe o que é um residente humano. A ilha é um território dos pássaros – já o era desde bem antes de Eneias se salvar em Troia e viajar para a Península Itálica. Cagarras, águias-gritadeiras, peneireiros-das-torres (um falcão), gaivotas-de-audouin e zarros-castanhos (um pato) enfeitam o céu, os cedros e os campos de Stamfani.
A ilha de São Dionísio e do padre Gregório é o suprassumo da solidão. Em uma Grécia em rigorosa quarentena, se Zakynthos está esvaziada, podemos imaginar quantas pessoas foram a Stamfani recentemente.
Mas dá para piorar. Sempre dá. É só olhar para o lado. No caso, para meros 1000 metros a noroeste: Arpia, a outra ilha que forma, com Stamfani, o arquipélago das Estrófades. Ela é ainda menor, mais rochosa e mais inacessível, já que suas águas rasas tornam qualquer aproximação perigosa.
Na mitologia, as Estrófades são a residência das harpias, criaturas meio ave de rapina, meio mulher. Segundo uma das versões, isso se deve aos argonautas Calais e Zetes, semideuses filhos de Bóreas, o vento do norte.
Fineu era um rei que foi castigado pelos deuses com a cegueira. Todos os dias, as harpias roubavam sua comida. Desesperado e morto de fome, Fineu prometeu ajudar os argonautas em sua caçada pelo velocino de ouro caso eles o salvassem.
Os irmãos se prontificaram, afugentaram as criaturas e as perseguiram até as Estrófades, onde elas permaneceram. Em outra versão, as harpias morreram nas ilhas e Calais e Zetes tiveram o mesmo destino.
O confinamento daquelas harpias durou para a eternidade. O nosso, se os deuses permitirem, acabará antes.
Então, qualquer dia desses, a Grécia voltará a estar plenamente acessível para quem pode. Já Stamfani, porém, somente para aves migratórias, bestas mitológicas, semideuses alados e monges a fim de um silêncio.
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