A barulhenta praça que sacudiu o Chile por meses e foi calada pela covid-19
33º26'S, 70º38'O
Praça Baquedano (praça Itália/praça da Dignidade)
Comuna de Santiago, Santiago, Chile
Consta que o general Manuel Jesús Baquedano González frequentava os mercados de La Chimba para reencontrar companheiros humildes, cujos esforços garantiram sua glória eterna na recém-encerrada Guerra do Pacífico (1879-1884). Vitorioso, o Chile conquistou vastos e ricos territórios. Tomou o Atacama do Peru e tirou da Bolívia sua saída para o mar, em uma guerra que tem feridas abertas até hoje.
La Chimba ("outra margem", em quíchua) era uma zona ao norte do rio Mapocho onde, desde os tempos coloniais, se concentravam os assentamentos de indígenas e mestiços em Santiago. Hoje corresponde aos bairros do Patronato e de Bellavista, o mais famoso reduto boêmio e artístico da capital.
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Nessas cavalgadas, o general Baquedano passava por uma grande praça, inaugurada como La Serena, mas que em 1892, nos 400 anos da chegada dos espanhóis à América, foi rebatizada de Plaza Colón. Em 1910, outra efeméride e outra mudança no local: o centenário da independência chilena foi marcado por diversos presentes de nações amigas na forma de monumentos na cidade. A Itália doou o Monumento al Genio de la Libertad, mais conhecido como "El Ángel y el León", instalado em frente a uma estação de trem. Com as transformações na área, a praça Colombo passou a homenagear a presenteadora: praça Itália.
Em 1928, o local ganhou seu marco mais famoso. O general Baquedano, três décadas após sua morte, foi eternizado sobre seu cavalo Diamante, numa postura contemplativa, mirando o oeste. Aos seus pés, uma mulher lhe oferece uma guirlanda de loureiros e copihues, flor endêmica e símbolo do Chile. Acompanham a estátua equestre uma placa com os dizeres "O povo chileno ao general Baquedano", datas das batalhas decisivas que ele liderou na Guerra do Pacífico e o túmulo do soldado desconhecido. A praça ganhou também, oficialmente, o nome do general, mas o nome de então pegou de vez e ela continuaria sendo chamada pela população de Plaza Italia.
Ao longo do século, a região passou por mais transformações urbanísticas. A estação de trem foi desativada e demolida, dando lugar ao Parque Bustamante. As construções do metrô santiaguino, a partir de 1979, mudaram "El Ángel y el León" de lugar, para o outro lado da praça, em frente ao Parque Forestal, que margeia o rio Mapocho.
A grande praça conecta algumas das principais avenidas do Chile e marca a divisa entre as regiões mais ricas e as mais pobres da capital. Dada sua geografia e seu simbolismo, ela se acostumou a ser o centro de manifestações e comemorações do país. Os ouros olímpicos no tênis, em 2004 (únicas medalhas de ouro do Chile na história dos Jogos) e a inédita conquista da Copa América, em 2015, jogada em casa, foram celebrados lá. As boas notícias da épica história dos mineiros de San José, resgatados com vida após 69 dias soterrados, em 2010, também atraíram o povo para a praça.
A REVOLTA
Mas foi pelas manifestações políticas que ela ganhou notoriedade no exterior. Especialmente a partir de outubro do ano passado, quando virou o coração pulsante da revolta contra o governo Sebastián Piñera. Todos os dias, gritos, cantos e tambores transbordaram dos pés da estátua – e acima dela e ao redor dela – para todo o mundo, em imagens que, via imprensa e redes sociais, entraram em todas as retrospectivas sobre os principais momentos de 2019 (um ano que já parece longínquo).
Estátuas e monumentos públicos que simbolizam o passado colonial ou glorificam as elites políticas do país entraram na mira dos revoltosos. Baquedano – senador da República e militar que comandou a Ocupação da Araucanía, a conquista de territórios dos mapuches (povo indígena do centro-sul chileno) nos anos 1860 – tornou-se um alvo óbvio. Grafites políticos cobriram o bronze do general e de outras estátuas, extravasando bandeiras, desejos e anseios presos na garganta por anos.
A raiva contra os super-ricos, a violência policial, o tratamento aos mapuches, o apoio a causas veganas, feministas, humanitárias. Cada espacinho conquistado em bustos e até na barriga de cavalos virava uma vitrine de causas, exibidas ao vivo em páginas e perfis que transmitiam o que se passava nas ruas chilenas.
Em geral, estátuas equestres, bustos, memoriais, arcos, obeliscos e obras do tipo são o retrato de um urbanismo de séculos passados, cujo simbolismo muitas vezes se perdeu no tempo ou foi sobreposto por algo mais pragmático, como servir de mero referencial de trânsito. Mas intervenções como as que rolaram no Chile tiram o pó do significado original das estátuas, trazendo-o de volta ao nosso olhar cotidiano, ao mesmo tempo em que as cobrem, literalmente, de novos sentidos.
Vimos isso em algumas manifestações dos últimos anos no Brasil, mesmo que em uma escala menor. Muita gente pode achar que é puro vandalismo. Tudo bem, mas o ponto aqui é outro. De repente, o busto daquele figurão do passado, que servia mais como um penduricalho na rua e banheiro público de pombos e cujo nome é uma vaga lembrança das aulas de história, volta a ser um personagem importante, simbolizando um tempo cheio de cicatrizes mal cuidadas no povo, que precisam ser explicitadas em pichações, cartazes e outras intervenções politizadas.
A estátua volta a ser um registro da História. E não importa que ela seja restaurada, lavada etc. As fotos ficam.
Na revolta chilena, não só os traumas do passado acabaram nas estátuas, mas também os ícones do momento atual. O enorme casal da Avenida Costanera, em Puerto Montt, Los Lagos, uma obra chamada Sentados Frente al Mar, ganhou olhos vermelhos e máscaras no rosto. No braço da mulher, uma mensagem, um grito, mais direto impossível: "No hay plata pal pan".
O fotógrafo chileno Camilo Vergara registrou essas transformações. Para ele, os olhos vermelhos são o mais chocante. "É a imagem mais inquietante, a que não sai da minha cabeça", disse, em entrevista ao site Atlas Obscura. É uma representação dos mais de 200 manifestantes que ficaram cegos por causa da repressão policial.
O NOVO NOME DA PRAÇA
O processo de ressignificação histórica crescia a ponto de, em novembro, surgir uma campanha para rebatizar (de novo) o local: praça da Dignidade. No Google Maps, a enxurrada de alertas para atualização do nome foi enorme. Até que "Plaza de la Dignidad" apareceu na plataforma de mapas. Muita gente comemorou, mas, no dia seguinte, ela voltou a ser Plaza Baquedano.
O ano virou, e em 2020 parecia que Piñera não teria trégua das ruas. No 8 de Março, dois milhões de chilenas marcharam. Dez grandes letras brancas marcaram o asfalto da rotatória da Praça Itália: "históricas".
Foi a última grande aglomeração. O coronavírus havia acabado de chegar ao país, o governo rapidamente decretou estado de exceção, com quarentenas "seletivas e dinâmicas", baseadas no avanço do número de infectados. A população entendeu a gravidade e respeitou as medidas em um grau maior do que o visto em certos países. Assim, um micro-organismo desconhecido encerrou, ou no mínimo pausou, meses de manifestações.
O Chile fez mais testes na população do que qualquer outro país latino-americano, mas ainda está longe de vencer a doença. Nesta semana, o bloqueio total em Santiago foi estendido, a fim de tentar frear os tristes recordes de casos confirmados por dia na capital.
A praça Itália pode ter se calado frente ao coronavírus, o que não quer dizer que a inquietação acabou. Nos bairros mais pobres, ondas de manifestações, com mulheres na maioria, têm desafiado a quarentena reclamando nas ruas da falta de comida e de trabalho. O vírus da revolta se alastrou.
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