Hoje tranquila, ilha na Ásia motivou guerras e tratados que mudaram o mundo
4º33'S, 129º41'L
Ilha Run
Ilhas Banda, Molucas, Indonésia
Houve um tempo em que noz-moscada era mais cara do que bitcoin ou carne bovina. É que ela era valorizada em excesso, pois servia de tempero e de medicamento (para a peste ou uma simples tosse) e porque sua oferta era muito limitada na Europa.
Ao lado de outras especiarias, a noz-moscada moldou a economia europeia nos séculos 16 e 17. "Literalmente valendo seu peso em ouro, o cravo, a noz-moscada, a canela, o gengibre e a pimenta geraram uma nova era de economia revolucionária baseada no crédito, o surgimento de um sistema bancário rudimentar e, em última instância, a livre iniciativa", escreveu o inglês Giles Milton em Nathaniel's Nutmeg, livro que narra a trajetória de Nathaniel Courthope, um dos principais exploradores britânicos nesse mercado.
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Um arquipélago na atual Indonésia, habitado há séculos por navegadores e comerciantes sagazes, tornou-se a única fonte de noz-moscada dos europeus, o que contribuiria um pouco para sua glória – e muito para sua ruína. Existiam variedades da especiaria da Índia à Nova Guiné, mas só a produzida nas Ilhas Banda eram conhecidas e desejadas.
Essas ilhas vulcânicas se estabeleceram como um importante entreposto comercial no Sudeste Asiático há cerca de dois milênios. Vendiam e revendiam uma série de artigos de luxo para chineses e papuásios e viviam em vilas autônomas. Uns dez séculos se passaram e seus habitantes começaram a cultivar moscadeira, cujos frutos geram a noz-moscada. A qualidade do produto e o talento nos negócios renderam fama entre javaneses, malaios e chineses.
No século 15, comerciantes árabes entraram na lista de clientes fiéis e espalharam a palavra na Europa. Navegadores europeus queriam descobrir a localização dessas ilhas e chegar à fonte das especiarias. Em 1511, os portugueses conquistaram o Sultanato de Malaca e fizeram dele uma base importante para outras investidas no Sudeste Asiático. Encontraram as Banda, mas jamais as conquistaram.
Em 1599, os holandeses chegaram e impuseram sua força. Exigiram o monopólio do comércio de especiarias e foram atendidos. Ou acreditaram nisso por um tempo, porque, quando os britânicos deram as caras, quatro anos depois, os bandaneses também fizeram negócios com eles.
Os ingleses estavam dando voltas e voltas pelo globo atrás de noz-moscada, de olho na assombrosa valorização de 32.000% que o produto ganhava ao ser comercializado na Europa. Em 1616, Nathaniel Courthope tomou posse de uma das dez ilhas do arquipélago, Run, ao assinar um acordo com os habitantes locais. "Não sem orgulho Jaime I viria a ser denominado rei da Inglaterra, Escócia, Irlanda, França, Puloway e Puloroon", escreveu o historiador John Keay no livro The Honourable Company, sobre a Companhia Britânica das Índias Orientais.
Cabe uma explicação. "França" porque, naquela época, os reis britânicos reivindicavam, formalmente, o trono francês (fruto das infindáveis tretas entre os dois países). Já a Irlanda só conquistaria a independência no século 20. "Pulo" vem de pulai, que é "ilha" em indonésio. Então o título se refere à ilha Roon (ou Run) e à ilha Way (ou Ai), uma ilhota vizinha à Run, que os ingleses também abocanharam.
Outro exemplo, ainda mais impressionante (e muito mais relevante), do valor que se dava a essas ilhas. Quando os portugueses conquistaram Malaca em 1511, o sinal de alerta disparou em Madri, que deu o troco dois anos depois na corrida pelo suposto domínio global quando Vasco Núnez de Balboa atravessou o Istmo de Darien, no Panamá, e chegou ao Pacífico.
Os dois países viviam o contexto do Tratado de Tordesilhas, que em 1494 estabeleceu que os territórios a leste da linha definida no Atlântico pertenceriam a Portugal e aqueles a oeste, à Espanha. Mas oeste até onde? Leste até onde? Se a Terra é redonda (ela é, fera), então as Molucas, o disputado arquipélago onde ficam as Ilhas Banda, pertenceriam a quem?
Um navegador português que participou da conquista de Malaca acabou se desentendendo com seu rei, dom Manuel I, e em 1517 passou a trabalhar para os espanhóis. Seu nome era Fernão de Magalhães e em 1519 ele zarpou de Sanlúcar de Barrameda a fim de chegar às "Ilhas das Especiarias" pelo Ocidente. "Não há nenhuma prova de que Magalhães tinha a intenção de circundar o globo. Sua proposta de expedição era uma calculada viagem comercial com o objetivo de superar o controle português da rota marítima para o arquipélago indonésio através do cabo da Boa Esperança, navegando não para leste, mas para oeste", explica o historiador britânico Jerry Brotton em Uma História do Mundo em Doze Mapas (Zahar).
Magalhães morreu no meio do caminho, mas sua viagem foi a primeira a dar a volta ao globo. A Questão das Molucas, como ficou conhecida, foi resolvida entre as partes em 1526, com o Tratado de Saragoça, em que os portugueses ficaram com as ilhas, pagando uma multa aos espanhóis. "Para Portugal, a perda das Molucas ameaçava acabar com o monopólio estabelecido sobre o comércio de especiarias, que havia transformado o reino, em menos de uma geração, de um território pobre e isolado na ponta da Europa em uma das potências imperiais mais poderosas e ricas do continente", segue Brotton.
Mas, como vimos, Portugal penou para manter sua influência na área. No século seguinte, eram holandeses e ingleses – que estavam se lixando para os acordos dos ibéricos de dividirem o mundo entre si – que disputavam as ilhas.
A COLÔNIA DA NOZ
Em 1621, os neerlandeses apertaram mais o cerco e forçaram a saída dos britânicos. Jan Pieterszoon Coen, chefe de operações da Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC), decidiu implementar um tipo de monopólio mais radical: substituir os bandaneses por agricultores de outras colônias, já assimilados.
A VOC foi uma das mais poderosas empresas da história – e das mais brutais. Os holandeses trouxeram escravos de outras colônias enquanto mercenários japoneses contratados por Coen esquartejaram 48 orang kaya (os líderes das comunidades autônomas) e exibiam suas cabeças empaladas em bambus. Queimaram vilas e escravizaram cerca de 800 habitantes, que foram enviados a Batávia, cidade que se tornaria a atual Jacarta. Houve relatos de pessoas que preferiam se jogar de abismos a se entregar. A população das ilhas caiu de cerca de 15 mil para 2 mil.
Os bandaneses que fugiram se estabeleceram em outras ilhas e criaram outras atividades comerciais. Alguns daqueles escravizados em Batávia foram levados de volta a fim de ensinar o cultivo de moscadeira.
A brutalidade da VOC estabeleceu as condições para os holandeses iniciarem a colonização das Índias Orientais Holandesas, que dariam origem à moderna Indonésia. Mas isso não quer dizer que os ingleses pararam de importunar os planos de Amsterdã na região.
Alguns atritos e batalhas depois, em 1667 eles assinaram o Tratado de Breda, em que os britânicos abriam mão de Run, permitindo aos holandeses o controle total das ilhas. Em troca, os ingleses pegaram outro assentamento holandês, na América do Norte: Nova Amsterdã, a colônia fundada na ponta sul de uma pantanosa e sem graça ilha chamada Manhattan.
Por décadas, os holandeses surfaram como ninguém a onda daquele pozinho, que ajudou a bancar a chamada era de ouro do país. Mas, eventualmente, os preços da noz-moscada e de outras especiarias começou a cair conforme tabaco, chá, café e outros estimulantes ganhavam público na Europa.
Na virada do século 18 para o 19, a Holanda já não era aquilo tudo. Dominado pelas tropas napoleônicas, o reino era um Estado vassalo, sem poder de reação quando os britânicos invadiram as ilhas Banda e atacaram os fortes Bélgica e Nassau, na ilha Banda Neira.
Os holandeses eventualmente recuperaram o controle, mas o estrago (para eles) estava feito: os ingleses transportaram mudas de moscadeira para outras colônias asiáticas e, consequentemente, o preço da noz-moscada desabou de vez. Os holandeses perderam o interesse pelas Banda e passaram a se concentrar nas ilhas maiores e mais importantes da Indonésia.
Talvez você já tenha ouvido falar de Run, ou das Banda em geral, por causa da troca por Manhattan, que seria o suprassumo das negociações colonialistas estúpidas no longo prazo, um erro crasso, exemplo de monocultura e sua maior sequela, a falta de visão. Meus professores de história e geografia adoravam a história, e com razão.
Mas a importância do acordo, na verdade, é outra, como disse o historiador indonésio Bonnie Triyana ao jornal australiano The Sydney Morning Herald: "Ele demonstra como o colonialismo era levado pelas nações ocidentais no Novo Mundo. Inglaterra, Países Baixos, Portugal e Espanha competiam para encontrar novas colônias impulsionados pelo desejo por riqueza. Eles arbitrariamente tratavam o que encontravam como meras commodities. Esses processos na História moldam a nossa situação atual."
É claro que a interpretação contemporânea é boa demais para ser posta de lado, afinal estamos comparando uma pequena e pobre ilha esquecida em uma economia emergente do Sudeste Asiático com uma pequena e outrora pobre ilha onde cresceu a cidade mais importante do mundo. Mas essa é uma realidade que tem um século e olhe lá.
Há 350 anos, os holandeses garantiram a manutenção de seu negócio por mais muitas e lucrativas décadas. Os ingleses penariam ainda um bocado na América, e quem fez Nova York virar Nova York foram os americanos e os seus imigrantes.
Portugal, Espanha, Inglaterra e Países Baixos não são mais as grandes potências que foram um dia. Talvez em 2370, daqui a uns 350 anos, o contraste entre Run e Manhattan não seja tão nítido assim.
PARA AQUELAS BANDAS
Run tem uma população de cerca de 2 mil pessoas, que ainda produzem noz-moscada. Com a independência da Indonésia, após a Segunda Guerra, as fazendas passaram a ser propriedade do governo. Mas, desde os anos 1980, os ilhéus assumiram o controle das plantações e distribuíram mudas entre todas as famílias, em uma forma de produção que remonta aos tempos pré-coloniais, de acordo com o site Atlas Obscura.
Para os viajantes, até mesmo os indonésios, as ilhas Banda não fazem parte das rotas mais comuns do turismo, de acordo com o Jakarta Post, um jornal local publicado em inglês. Mas o acesso precário compensa.
Elas oferecem trilhas em vulcões ativos, bons pontos de mergulho e ruínas dos tempos holandeses. O Forte Bélgica segue de pé, assim como o antigo palácio do governador e um um templo chinês de 300 anos, que lembra que não eram só potências ocidentais que buscavam a riqueza da noz-moscada.
Melhor buscar uma boa história, de preferência com alta octanagem de ironia. Quando estiver em Run, você pode se hospedar na pousada Manhattan. Nova York não ofereceria uma vista dessas.
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